Não tem
muito tempo que a WeWork tentou lançar seu IPO. A empresa do controverso Adam
Neumann, capitalizada pelo não menos controverso Softbank, tinha ambições de
vir a público precisando justificar seu gordo valuation de 50 bilhões de
dólares. E a verdade é que a WeWork tinha alguns dos principais ingredientes
pra conseguir um gordo valuation nesse nosso mundo atual, quais sejam, um
rápido crescimento de receitas (quase 90% ano contra ano) e muito prejuízo
(perdas de 1.5 bilhão em receitas de pouco menos de 2 bilhões). Faltava só uma
coisa.
Adam
Neumann e seus consultores sabiam o que faltava. Então, para não faltar mais,
eles fizeram questão de posicionar a WeWork no prospecto da oferta como uma
empresa de tecnologia. A palavra tecnologia apareceu mais de 100 vezes, como se a WeWork
fosse alguma espécie de Google. Acontece que a WeWork nada mais é do que uma
empresa que aluga grandes espaços por longos períodos e subloca como espaço de co-working por pequenos períodos. Nada tão tecnológico assim, apesar dos
esforços dos publicitários.
Por razões
variadas a oferta pública da WeWork não foi para a frente. Mas a questão da
tecnologia marcou. Porquê a WeWork acha que é uma empresa de tecnologia? Porquê
as empresas buscam ser vistas como empresas de tecnologia? Porquê ser vista
como uma empresa de tecnologia aumentaria o valuation? Aliás, se formos
honestos, vamos perceber que não sabemos nem que diabos é ser uma empresa de
tecnologia.
O QUE É UMA
EMPRESA DE TECNOLOGIA?
Definir uma
empresa de tecnologia é mais complicado do que parece. Fique a vontade para
tirar cinco minutos e pensar no assunto. Pega um papel, escreva sua definição e
pense nas pontas soltas.
“É uma
empresa que busca inovar!” E qual empresa não busca?
“É uma
empresa que usa tecnologia para o seu negócio.” E qual empresa não usa? Talvez apenas
o artesão de rua.
“É uma
empresa que vende tecnologia!” Mas e a Tesla, por exemplo? A Tesla vende carro.
Carro é tecnologia? Se sim, a Ford é uma empresa de tecnologia? Se não, a Tesla
não é uma empresa de tecnologia? A Tesla é apenas uma fabricante de carros e
fabricantes de carros não são empresas de tecnologia? E os softwares escritos
pela Tesla?
“Capex é o
melhor caminho! Capex tem que ser em pesquisa e desenvolvimento.” A Bayer é uma tech company? Ninguém gasta
tanto em P&D quanto as farmacêuticas...
Detalhes,
definições e especificações são inimigos da superficialidade. E aos poucos
vamos percebendo que existe uma zona cinzenta na definição de uma empresa de
tecnologia. Não é preto ou branco.
Eu lembro
que lá pra década de 70 e 80 o que se entendia por empresa de tecnologia era a
IBM e ponto final. A IBM fazia hardware, software e vendia serviços também.
Todo o resto além da IBM não era tecnologia. Ninguém ousava chamar a Ford ou a
GE de empresa de tecnologia só porque suas máquinas e motores iam ficando mais
potentes e eficientes com o tempo.
Os anos
foram passando, houve a expansão do PC, novas empresas surgiram e nomes como
Microsoft e Dell foram se juntando a IBM. E o grupo inflou de vez com a
internet. Qualquer catálogo online era uma empresa de tecnologia. E de lá pra
cá a tecnologia foi avançando de maneira que hoje em dia ela é peça central de
qualquer negócio, por mais simplório que este seja.
Como um
amigo diz brincando, “saber se uma empresa é de tecnologia é simples. Todas
são.”
Existe um toque de verdade nessa frase apesar do tom jocoso. E é se aproveitando desse toque de verdade, por menor que possa ser, que empresas como o WeWork tentam nos convencer de que são uma empresa de tecnologia.
MAS PORQUE TODO MUNDO QUER SER UMA EMPRESA DE TECNOLOGIA?
Mais um
pouco de história aqui. Todo mundo já ouviu falar no Vale do Silício. O que nem
todo mundo ouviu falar é sobre a origem do nome, dado por conta do extenso uso
do silício nos produtos desenvolvidos naquela região. Em especial os chips.
O
desenvolvimento dos chips tem dinâmica de fluxo de caixa muito comum nas rodas
de conversa atuais. É muito caro desenvolver o primeiro chip mas, uma vez
desenvolvido, fica barato construir chips adicionais. E a Intel foi pioneira em navegar por essa
realidade econômica de uma forma que originou a indústria dos VCs.
A Intel
começou com um investimento inicial de 10 mil dólares do Arthur Rock. Em pouco
tempo Rock teve que levantar outros $ 2.5 milhões com amigos e investidores.
Era muito dinheiro mas era o que a Intel precisava para fazer a roda girar. E
girou. Três anos depois a Intel lançou seu IPO por mais de 8 milhões de
dólares.
Assim a
Intel plantou a semente da prática de injetar dinheiro em uma empresa que
exige muito financiamento inicial mas que depois, com seu baixo custo marginal,
é capaz de crescer em um ritmo frenético. Um ritmo que modelos de negócios
tradicionais jamais sonhariam. Quem consegue servir toda a população de um país
com menor custo marginal, a Microsoft distribuindo software ou o Walmart
construindo lojas? Exatamente!
A internet
e a conectividade foram um campo fértil para os vencedores desse modelo de
negócios. O custo marginal diminuiu ainda mais, o mercado potencial aumentou, exponenciais
efeitos de rede ampliaram em muito a capacidade de escala. Empresas como Google
e Facebook são os grandes baluartes dessa fantástica dinâmica. E o que elas tem
em comum? São empresas de tecnologia pura.
A
possibilidade de atingir essa dinâmica de negócio moldou as expectativas em
torno desse tipo de empresa. Ficou mais aceitável injetar muito capital em uma empresa recém nascida e também passou a dar pra engolir os altos múltiplos de negociação. E
é para se beneficiar desse nível de expectativa que todas as empresas buscam o
rótulo de empresas de tecnologia hoje em dia. É um nível de expectativa que
permite:
1- Receber
muito aporte
2- Gastar
muito dinheiro
3- Ter
grandes avaliações
Quem não
quer?
O
INVESTIDOR NO MEIO DISSO TUDO
No texto "Minha própria National Geographic" eu expliquei a diferença entre valoradores e precificadores.
Vou colar aqui para refrescar a memória:
O processo de valorar uma empresa depende dos fundamentos da empresa e da forma como você vê esses fundamentos se desenvolverem no futuro. É um processo que acontece sem “olhar para os outros jogadores”. O que você precisa é endereçar coisas como expectativa de crescimento, geração de caixa e qualidade dos ativos da companhia.
No jogo da precificação pouco importa o valor intrínseco. Mas aqui é preciso olhar para os outros jogadores e entender as forças atuantes de oferta e demanda. É uma busca por antecipar o movimento do mercado em fatores como fluxo, humor e momentum.
Essa
distinção define como você lida com a questão da tecnologia. Nada como um
exemplo da vida real para ilustrar, não é mesmo? Então vamos a um:
Essa semana
um gestor famoso fez o seguinte comentário sobre uma varejista (da qual seu
fundo é grande acionista):
“Se a empresa passar a ser vista como uma empresa de tecnologia ela deveria ser tradada a um preço 4x o atual”
Então eu
fiz a seguinte pergunta:
“E porque ela deveria ser vista como uma empresa de tecnologia?”
Sendo
sincero, eu não estava muito interessado na empresa propriamente dita. Eu estava interessado
em forçar a reflexão e observar as reações. Eu estava ligando na minha National Geographic. Eu queria ver a interação entre os valoradores, os precificadores e os perdidos (aqueles que não sabem o que são). Essa distinção muda a forma como cada um encara tanto o comentário do gestor quanto a minha pergunta.
O gestor
falou como um precificador. E está certo! No momento em que o mercado começar a
ver uma varejista como uma empresa de tecnologia, ele vai ajustar as
expectativas para aquilo que eu expliquei lá em cima. Isso quer dizer que a
varejista virou tech? Não! Mas não importa. Vai importar o humor, vai importar o
mercado, vai importar a oferta e a demanda. É isso que interessa para o
precificador e é por isso que não me surpreendi quando vi respostas comentando
sobre empresas supostamente comparáveis. Múltiplos são ferramentas clássicas do
precificador.
Para o
valorador as coisas não funcionam assim. O valorador é indiferente ao comentário
que o gestor fez. O importante é a pergunta que eu fiz. Porque a pergunta que
eu fiz vai nos fundamentos da companhia. Eu quero saber como a empresa vai escalar.
Quero saber como vai ser o custo marginal da empresa. Quero saber a necessidade
de reinvestimento da empresa. Quero saber como vai ser a margem da empresa. E
quero saber como isso vai acontecer. Ou seja, eu quero saber como os
fundamentos que são diferenciais em uma empresa de tecnologia pura vão se mover
na varejista que quer ser vista como uma empresa de tecnologia. Fundamentos!
O MR. MARKET,
O VALORADOR E O PRECIFICADOR
A parábola
do Mr Market, criada por Graham e popularizada por Buffett, já é bem conhecida.
E o Mr. Market é o camarada que bate na sua porta com uma tabela de preços
indicando por quanto ele está disposto a comprar suas posses e a te vender as
dele. Você pode aceitar ou não. No dia seguinte o Mr. Market bate de novo na
sua porta para fazer tudo de novo, só que dessa vez com uma nova tabela de preços.
E assim ele faz todo o santo dia.
O valorador
e o precificador tem relacionamentos diferentes com o Mr. Market. O
precificador quer antecipar a tabela de preços que o Mr. Market vai trazer no
dia seguinte. Já o valorador apenas age sobre a tabela de preços que lhe é
apresentada. O Mr. Market é previsão para um e fato para outro.
O
precificador segue o Mr. Market pelas ruas para descobrir se ele vai estar
feliz ou triste na próxima visita. O valorador abre a porta na hora da visita e
olha para o Mr. Market. Se ele estiver deprimido, o valorador compra. Se ele
estiver em êxtase, o valorador vende.
O Mr.
Market é senhor do precificador e servo do valorador.
COLOCANDO
TUDO JUNTO
Os pontos
principais do texto são o seguinte:
- Ser ou
não uma empresa de tecnologia é mais uma área cinzenta do que um preto ou
branco.
- Empresas
de tecnologia de referência tem atributos de negócios únicos como pouca
necessidade de ativo físico, gigantesco potencial de escala, custo marginal
baixo e margens altas.
- Reconhecer
que é possível para uma empresa se aproximar da dinâmica de uma empresa de tecnologia
de referência altera a resposta do mercado, que fica mais tolerante com funding,
gastos e avaliações.
- Valorador:
(1) fundamentos da empresa; (2) Mr. Market = servo
- Precificador: (1) participantes do mercado; (2) Mr. Market = senhor
Ok, mas como eu
lido com tudo isso? Vamos lá:
- Eu sou
um valorador, então pouco me importa como o mercado vai ver ou deixar de ver
uma empresa.
- Eu
entendo que o aspecto tecnológico de uma empresa é um grande intervalo (uma
área cinzenta). Em uma ponta está o artesão da rua sem nenhuma tecnologia
envolvida. Na outra ponta está o Google, pura tecnologia. A maioria das
empresas está no meio. Por exemplo, o Uber está mais próximo do Google do que
uma cooperativa de táxi.
- Busco
entender a contribuição dos aspectos tecnológicos da empresa para os seus
fundamentos (crescimento, margem, etc). Ainda sobre Uber/Cooperativa, é muito
claro que o componente tecnológico permite que o Uber escale muito mais do que
uma cooperativa. Por outro lado, o mesmo modelo tecnológico-disruptivo aumenta
os riscos regulatórios do Uber em relação à uma cooperativa.
- Quando o Mr. Market chega depressivo eu compro e quando chega animado demais eu vendo.
E é assim
que lido com esse debate tecnológico. No final das contas nada muito diferente do que com qualquer outro tipo de empresa, não é mesmo? Uma questão de entender a dinâmica dos fundamentos, ponderar as incertezas e se servir do Mr. Market.
Stay cool,
Don Black