Sunday, September 8, 2019

Modelo Mental do Don Black: O Viés da Consistência e Comprometimento


Caso você não saiba o que é um modelo mental, clique aqui

Esse texto é sobre o primeiro modelo mental do blog: o viés da consistência e comprometimento.

Eu mantenho um resumo de todos os meus modelos mentais e coloquei uma versão simplificada deste resumo no fim do post. Assim, se você quiser simplificar sua vida e não ler o texto todo você pode ir lá para o final e ficar com o resumo. Deve ser o suficiente para entender a idéia.

Mas se você quiser ler tudo, seja bem vindo(a):

INTRODUÇÃO - Uma breve estória da minha infância

Toda família tem o seu membro mais teimoso. Na família de um dos meus melhores amigos esse sujeito era seu avô João Carlos a quem eu, carinhosamente, chamo de Tio Jão desde que sou criança. As memórias que tenho da época que íamos na casa do Tio Jão são as melhores da minha infância. O Tio Jão tinha construido uma bela casa no alto de uma montanha em uma área legal da cidade. A gente brincava no enorme terreno da casa olhando as luzes da cidade lá embaixo e nos sentindo em um castelo lá no alto.

Tio Jão adorava! Brincava que era o dono da montanha e falava para quem quisesse ouvir que os amigos dos seus netos também eram seus netos e os amigos dos seus filhos também eram seus filhos. E dizia que já que tinha tantos netos e tantos filhos, não fazia sentido morar em lugar pequeno. Ele precisava de uma montanha só pra ele.

A medida que o tempo foi passando as coisas foram se complicando. Os netos cresceram, alguns parentes se mudaram e outros estavam simplesmente sempre ocupados. Algumas outras pessoas começaram a aparecer na montanha do Tio Jão que, a essa altura, já não era só dele. E foi quando seus filhos tentaram faze-lo se mudar.

Queriam que Tio Jão e Tia Néia, sua esposa, fossem para um apartamento mais perto do resto da família. Mas Tio Jão maldizia a decisão de morar em apartamentos. “Quem mora em lata é sardinha. Tubarão nasce e morre no oceano”, era o que ele falava. A montanha era seu oceano e Tio Jão era um tubarão. Ou pelo menos assim ele via as coisas.

Pouco antes de o Tio Jão falecer, a vida da sua família estava caótica. Tio Jão estava doente o suficiente para precisar de assistência regular e lúcido o suficiente para continuar irredutível nas suas decisões. O que antes era a montanha do Tio Jão tinha se tornado um morro de traficantes. Como Tio Jão era morador antigo, ainda era permitido que transitasse por ali. Não sem a benção dos novos chefes, claro.

Então para chegar na casa do Tio Jão era preciso acender a luz do carro, se identificar para uns garotos de fuzis e pedir autorização para subir e descer. Os filhos do Tio Jão, que se revezavam para levarem ele aos médicos, conviviam com essa situação. Todo o resto – netos e, agora, bisnetos – já tinham deixado de ir lá. Eu inclusive.

Nada do que fazia a casa do Tio Jão tão especial existia mais. Exceto por ele mesmo e pela Tia Néia, que poderiam continuar existindo em qualquer outra moradia. Mas para o Tio Jão não existia outra moradia. Ele precisava de espaço, aquela era sua montanha e ponto final.

Tio Jão não conseguia agir diferente diante da nova realidade. Tio Jão era assim, um cara insuportavelmente teimoso. Só mais tarde eu vim a entender que Tio Jão era apenas uma vítima.

Assim como todos nós, Tio Jão era uma vítima do viés da Consistência e Comprometimento.

***

"O que eu estou dizendo aqui é que a mente humana se parece muito com o óvulo humano, e que o óvulo humano tem um dispositivo de fechamento. Quando o espermatozóide entra, ele se fecha para que o próximo não possa entrar. A mente humana tem uma tendência do mesmo tipo." Charlie Munger

O Viés da Consistência e Comprometimento é a tendência a respondermos e agirmos consistentemente de forma a nos mantermos alinhados com um comportamento, escolha ou visão assumidos anteriormente.

É possível pensar no viés da consistência e comprometimento como uma defesa humana. Sim, uma defesa natural contra as consequências da inconsistência. A inconsistência é um traço de personalidade indesejado e associado a uma pessoa confusa, hipócrita ou indecisa. Por outro lado, a pessoa consistente é tida como alguém estável e racional.

Nosso cérebro entende a importância que a consistência tem para nossa vida e por isso tenta ajudar nos mantendo consistentes. Na verdade nosso cérebro vai além! Ele tenta nos manter consistentes poupando nossa energia. Para fazer isso, nosso cérebro gera respostas consistentes e automáticas. Nas palavras do psicólogo Robert Cialdini:

“Nos proporciona um método conveniente, eficiente e sem muito esforço para lidar com as complexas situações diárias que demandam muito das nossas energias e capacidades mentais. Não é difícil entender, então, porquê a consistência automática é uma reação difícil de frear. Ela nos oferece uma forma de fugir dos rigores do pensamento contínuo.”

Assim, sem precisar gastar energia ponderando cada argumento, cada dado e cada fato que esbarramos no dia a dia, podemos seguir interagindo com as pessoas sem trair nossos velhos posicionamentos.

O VIÉS NO CONTEXTO DOS INVESTIMENTOS

Eu conheço um rapaz nos Estados Unidos que esta anunciando a próxima recessão desde 2011. Qualquer pessoa razoável haveria de esperar que esse sujeito tivesse suavizado suas opiniões ao longo dos últimos 8 anos de bull market. Ao invés disso, ele escalou.

Lembro que as coisas começaram com uma opinião pessimista em um papo entre amigos. Pouco tempo depois a opinião virou um post despretensioso na rede social. Em pouco tempo aquilo que começou como uma breve opinião pessimista já tinha outras proporções. Com menos de um ano do primeiro post e sua tese já tinha ganhado musculatura com gráficos e opiniões de especialistas. 

Para todo argumento contrário ele remetia à 2007. Então pra ele, 2011 era como 2007. Depois 2012 era como 2007. E 2013 era como 2007. E assim ele está até 2019. Curiosamente ele ganhou muitos seguidores ao longo do caminho e hoje já é um permabear referência.

Esse rapaz caiu na areia movediça do viés da consistência sem se dar conta, que é exatamente como as coisas costumam acontecer. O grande passo dado para a areia movediça aconteceu quando um investidor famoso reencaminhou um dos seus primeiros posts endossando a sua opinião bear. Do dia pra noite ele ganhou milhares de seguidores, quase todos pessimistas também. Daí em diante sua vida foi alimentar essa legião de séquitos com informações apocalípticas. E assim, sem perceber, ele criou uma identidade. Aquilo se tornou quem ele era.

"Sempre que uma pessoa assume uma posição pública surge o impulso de manter essa posição para parecer uma pessoa consistente." Robert Cialdini

Ter esse tipo de postura pode ter lá suas vantagens. Esse sujeito hoje está famoso. Anunciar o fim do mundo virou sua especialidade e, como nós sabemos, anunciar o fim do mundo dá audiência. Então ele volta e meia aparece na mídia. Para muitas pessoas isso é suficiente. Já vi gente fazendo coisa muito pior em busca da fama. Mas alguém que busca performance em investimentos não pode se dar ao luxo de ter um pensamento fixo.

O grande perigo do viés da consistência e comprometimento é ignorar evidências contrárias. O investidor deve ter a humildade de reconhecer que pode estar errado e ser flexível para ajustar a tese de investimentos se necessário for. Se apaixonar por uma ação pode ser terrível já que, tal qual é nas relações humanas, nem sempre ela corresponde.

Outra situação de interesse para o investidor é quando o viés da consistência e comprometimento acomete o executivo de uma empresa. Um exemplo conhecido é o famoso guidance, onde o executivo diz para o mercado o que esperar da empresa na próxima divulgação de resultados. No afã de se manter consistente e diante do comprometimento público com um mercado que pune decepções de curto prazo, o executivo apela a todo tipo de artifício.

“A pressão por números prejudica o julgamento e rouba a dignidade... faz com que pessoas boas e inteligentes façam coisas eticamente idiotas e as aproximam de um colapso ético.” Marianne Jennings, 'The Seven Signs of Ethical Collapse'

Claro, um eventual colapso ético para alcançar um número não pode ser atribuido apenas ao viés da consistência e comprometimento. Outros vieses e outros incentivos entram em jogo. E assim é não apenas com os colapsos éticos mas com os comportamentos em geral. Várias forças atuam juntas e vão nos guiando sem percebermos. 

E é por isso que os modelos mentais fazem parte de uma malha, se conectando e interagindo uns com os outros. Vou ficando por aqui com um breve resumo que uso em todos os meus modelos mentais.

***

MODELO MENTAL DO DON BLACK

Nome: Viés da Consistência e Comprometimento

O que é: tendência a respondermos e agirmos consistentemente de forma a nos mantermos alinhados com um comportamento, escolha ou visão assumidos anteriormente.

Risco: tomar decisões erradas por ignorar/evitar evidências contrárias

Comportamentos preventivos: 

Manter a mente aberta para o contraditório, manter a humildade, reconhecer que posso cometer erros, reconhecer que há coisas que desconheço e sou ignorante, ser flexível

Medidas preventivas:

- buscar o contraditório, fazendo o advogado do diabo ao testar minhas hipóteses com a visão de outros investidores (seleto grupo) / profissionais da empresa / profissionais das empresas concorrentes / fornecedores / clientes / usuários / ex-funcionarios / especialistas da indústria

- manter um diário de investimentos e reavaliar as teses regularmente

- observar o comportamento da gestão da empresa diante dos guidances (ex: nível de atividade de M&A, contabilidade criativa, etc)



Stay cool,

Don Black


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