Monday, October 14, 2019

Os Missionários


O EMPREENDEDORISMO E A RAZÃO

Na semana passada o amigo @uorrembife (twitter) do site abacusliquid.com postou o seguinte:




Ele está certo, muito certo! Abrir um negócio para trabalhar pouco e ficar rico é um dos maiores descolamentos entre realidade e expectativa que existem. E ainda assim muita gente faz. Uma explicação pra isso vem da combinação do viés de sobrevivência com a romantização da história dos sobreviventes. Ou seja, não apenas nos concentramos nos poucos casos que prosperam como vemos esses casos de sucesso como um caminho suave de paz e prosperidade.

Longe disso, o caminho do empreendedor de sucesso é melhor descrito da seguinte forma:

“Na verdade, o meio é extremamente volátil – uma sequencia contínua de subidas e descidas, expansões e contrações. Assim que a lua de mel de começar uma nova jornada acaba, a realidade te dá um soco na cara. Forte. Você vai se sentir perdido e depois vai encontrar uma nova direção; você vai progredir e depois vai andar pra trás.”, Scott Belsky



É fácil olhar para a Berkshire e se imaginar no lugar de Buffett, ganhando bilhões enquanto se empanturra de hamburger e coca cola. Mas não é tão fácil virar as noites estudando ação por ação no manual da Moody’s. O Buffett que está hoje na CNBC só existe graças ao Buffett que vivia uma vida muito menos glamourosa e mais estressante há 60 anos atrás. O Buffett que todo mundo quer ser só existe graças ao Buffett que quase ninguém quer ser.

A vida dos empreendedores é cheia de obstáculos. Obstáculos que acabam esquecidos e obstáculos que acabam virando lendas romanceadas quando a empresa cresce. Mas obstáculos que, no momento em que aparecem, são questões de vida ou morte. A narrativa que Phil Knight faz no livro Shoe Dog sobre sua caminhada e a criação da Nike é espetacular. Recomendo que todos leiam. É uma narrativa honesta sobre sua caótica jornada. Sobre essa experiência, Knight diz o seguinte:

“Para o empreendedor, todo dia é uma crise.”, Phil Knight

Acho que vocês já pegaram a idéia. Abrir um negócio é, de forma geral, uma manifestação irracional. O interessante é que no nosso ecossistema nós temos uma espécie forjada para lidar com essa irracionalidade: o missionário.

O MISSIONÁRIO

"Nunca tenha pena dos missionários; inveje-os. Eles são onde a verdadeira ação está - onde vida e morte, pecado e graça, Paraíso e Inferno convergem.", Robert C. Shannon

O missionário é a pessoa que ri diante das estatísticas. Sabe aquelas manchetes do tipo “90% das pessoas que tentam fazer determinada atividade falham”? Pois bem, os missionários não estão nem ai pra elas. Eles não pensam nos 90% que falham. Nem nos 10% que vencem. Nem no 1% dos mais bem sucedidos. Eles pensam apenas naquilo que eles e somente eles estão construindo.

Ou seja, a estatística não vale nada porque aquilo que ele vai fazer jamais foi feito mesmo. Esse é o missionário, um sujeito que atravessa a linha de tiro com um alvo na testa e tem a convicção de que vai prosperar.

Nem todos prosperam, é claro. Assim como vários outros que não são missionários acabam encontrando sucesso. Mas os missionários tem um arcabouço emocional para enfrentar dificuldades que ninguém mais tem. Isso porque, entre outras coisas, os missionários tem senso de propósito e fé no sucesso. E como diz Laurence Gonzales em Deep Survival, “a fé é uma coisa muito importante no desejo de sobreviver”.

Tomemos Ayrton Senna por exemplo. Você sabe qual é a chance de uma criança do kart virar um ídolo da fórmula 1? Eu não sei mas imagino que não seja grande. E acredito que Senna também nunca se perguntou sobre isso. Na verdade Senna avaliava suas chances dessa maneira pouco científica:



“Seja você quem for, seja qual for a posição social que você tenha na vida, a mais alta ou a mais baixa, tenha sempre como meta muita força, muita determinação e sempre faça tudo com muito amor e com muita fé em Deus, que um dia você chega lá. De alguma maneira você chega lá.” Ayrton Senna

Quando colocamos essa declaração no contexto da vida de Senna é muito claro que estamos diante de um missionário. É direito de cada um se perguntar se o “modo Senna” valeu a pena diante da morte precoce mas essa é uma pergunta que um missionário jamais faria. Jamais faria, porque o missionário já nasceu com a resposta no sangue.


O MISSIONÁRIO E O MERCENÁRIO NO MUNDO DOS NEGÓCIOS

Peter Thiel, primeiro investidor do Facebook, contou uma estória interessante sobre Zuckerberg. Ele contou que quando o Facebook tinha apenas 10 milhões de usuários - hoje tem mais de 2 bilhões - a Yahoo! fez uma oferta de aquisição no valor de 1 bilhão de dólares. A parte de Zuckerberg, então com 22 anos, era de 250 milhões de dólares.

Com a perspectiva de colocar toda essa grana no bolso e poder curtir a vida adoidado sendo quase um adolescente, o que Zuckerberg fez? Rejeitou a oferta sem hesitar! Segundo Peter Thiel, Zuckerberg sequer ponderou a proposta imaginando como seria sua nova vida. Zuckerberg simplesmente rejeitou seus 250 milhões de dólares como se aquilo fosse uma banalidade cotidiana. Ele gostava do que fazia e tinha planos para sua empresa. Nada mais importava.

Decisões como essa contrastam muito com as decisões tomadas por um outro grupo do nosso ecossistema, esse mais comum: os mercenários. Apesar de soar pejorativo, não há nada de errado em ser mercenário. Os mercenários tem espaços e oportunidades no ecossistema, não estão fazendo nada ilegal e em muitos casos são competentes.

Mas os mercenários não tem o senso de propósito dos missionários. Eles são mais preocupados com suas carreiras, seus bens e suas reputações pessoais. Quase todos os executivos carreiristas são mercenários. Assim como são mercenários aqueles fundadores que já começam a empresa pensando em uma estratégia de saída, sonhando com o dia em que vão receber uma oferta de 1 bilhão de dólares do Yahoo!.

Até onde vai meu conhecimento a primeira pessoa a formalizar a diferença do mercenário para o missionário foi John Doerr, famoso venture capitalist americano da californiana Kleiner Perkins. A diferenciação que ele faz é a seguinte:

“Os mercenários são movidos pela paranóia; os missionários pela paixão. 
Os mercenários pensam oportunisticamente; os missionários pensam estrategicamente. 
Mercenários vão para o sprint; missionários vão para a maratona. 
Os mercenários se concentram em seus concorrentes e demonstrações financeiras; os missionários se concentram em seus clientes e em demonstrações de valor. 
Mercenários são chefes de matilhas de lobos; missionários são mentores e treinadores de uma equipe. 
Os mercenários se preocupam com seus direitos; os missionários são obcecados em contribuir. 
Mercenários são motivados pelo desejo de ganhar dinnheiro; os missionários, embora reconheçam a importância do dinheiro, são fundamentalmente motivados pelo desejo de deixar um legado.”
Eu não acho que um missionário tenha necessariamente que preencher todos esses requisitos daí. Steve Jobs foi inegavelmente um missionário mas há controvérsias sobre ter sido um grande mentor e treinador de equipe. Mas de forma geral eu acho a definição de Doerr bem razoável.

Do ponto de vista de investidor, já investi tanto em mercenários quanto em missionários. Na verdade, já investi muito mais em mercenários pela simples razão de que eles constituem ampla maioria. Mas se me perguntarem eu vou dizer que prefiro investir em missionários. Missionários tem qualidades incomparáveis e inalcançáveis pela pessoa comum. Possuem personalidade extrema e produzem resultados extremos. Mas como em tudo na vida, cobram seu preço.

Elon Musk fundou Paypal, SpaceX e Tesla. Com 32 anos, Musk era um sujeito que já tinha desafiado instituições financeiras e agora se via pronto para engolir não só a Ford como também a NASA. Ao mesmo tempo! Agora se pergunte, que espécie de ser humano faz isso? A mesma espécie que vai enlouquecer os investidores no twitter com declarações pouco convencionais.

Os missionários são pensadores independentes, de muita ação e pouco apego a convenções. Lidar com alguém assim pode ser muito difícil e estressante. Mas não é possível ter a parte do missionário que você gosta sem levar junto a parte que te desagrada. É o trade-off da personalidade extrema.

Enquanto investidor, demorei algum tempo para aprender a conviver com executivos missionários. E enquanto ser humano, nunca deixei de admirar o missionário. O sujeito que não pode ser comprado, que não pode ser intimidado. O sujeito que incomoda e faz a pessoa comum se sentir desconfortável. O sujeito que faz o impensável e debocha da estatística. O sujeito que nunca se contenta. O sujeito cuja personalidade é graça. E cuja personalidade as vezes é desgraça. Como foi em um dia de maio de 1994.

Mas quem há de dizer que não valeu a pena?




"Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou vilipendiá-los, mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los, porque eles mudam as coisas... eles empurram a raça humana para frente, e enquanto alguns podem vê-los como loucos, nós os vemos como gênios, porque aqueles que são loucos o suficiente para pensar que podem mudar o mundo, são os que o fazem.", campanha "Think Different" da Apple em 1997


Stay hungry, stay foolish,
Don Black



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