Thursday, September 26, 2019

A alavancagem, o grande público e - mais uma - lição de Buffett para os profissionais


Rick Guerin é o nome do sujeito. Ele não é um camarada muito conhecido do grande público. E talvez ninguém jamais tivesse ouvido falar do seu nome se não fosse pela menção que Buffett fez a Guerin no épico texto The Superinvestors of Graham and Doddsville*. Uma menção para lá de justa diante dos seus resultados:





A tabela acima mostra um nada modesto track record com retorno anualizado de 32.9% ao longo de 19 anos. Então era de se esperar que um superinvestidor com esse nível de resultados fosse se tornando cada vez mais famoso ao longo do tempo. Mas ao invés disso Rick Guerin desapareceu.

A curiosidade sobre o que foi feito de Rick Guerin foi tanta que Mohnish Pabrai não se conteve e perguntou direto na fonte, ou seja, para Warren Buffett. Para aqueles que não conhecem, Mohnish Pabrai é um investidor indiano, autor do excelente livro The Dandho Investor, e que ficou famoso ao vencer um leilão para almoçar com Buffett.

Enfim, de acordo com Mohnish Pabrai, Buffett respondeu sobre Guerin alguma coisa como:

“Sim, eu ainda tenho muito contato com ele. Charlie e eu sempre soubemos que seriamos incrivelmente ricos. Nós nunca tivemos pressa para ficarmos ricos; nós sabiamos que ia acontecer. Rick era tão esperto quanto a gente mas ele estava com pressa.”

Pabrai explicou na entrevista, que pode ser vista aqui, que Rick Guerin estava alavancado em 73 e 74, e que com a queda dos mercados teve que encarar chamadas de margem e foi obrigado a se desfazer de algumas posições.

Quando eu olho para os resultados de Rick Guerin eu vejo que ele realmente sofreu perdas de mais de 60% em 73 e 74, mas se recuperou nos anos seguintes. Então não é claro se no final das contas a alavancagem de Guerin o tirou definitivamente do jogo ou não.

Mas segundo Pabrai, o que começou como uma curiosidade sobre o destino de Guerin acabou como uma valiosa lição de Buffett: tomar cuidado com alavancagem e ter paciência

E sobre alavancagem, Buffett já havia nos presenteado com esse trecho na carta da Berkshire de 2010:

“Inquestionavelmente, algumas pessoas se tornaram muito ricas através do uso de dinheiro emprestado. No entanto, esse também tem sido um caminho para ficar muito pobre. Quando alavancagem funciona, ela magnifica os seus ganhos. Sua esposa pensa que você é esperto e os seus vizinhos ficam com inveja.
Mas alavancagem é viciante. Uma vez tendo lucrado com suas maravilhas, pouquíssimas pessoas se recolhem a práticas mais conservadoras. E como todos nós aprendemos na terceira série – e alguns reaprenderam em 2008 – qualquer série de números positivos, por mais impressionantes que esses números sejam, evapora quando multiplicada por um único zero. A História nos diz que alavancagem está sempre produzindo zeros, mesmo quando aplicadas por pessoas muito inteligentes.”

Eu gosto desse trecho porque não só alerta para o perigo da alavancagem como mostra um pouco da psicologia que nos faz cair no canto da sereia de investir com dinheiro emprestado.

Agora, toda vez que mostro Buffett alertando sobre alavancagem eu ouço alguma coisa do tipo:

“Buffett fala isso mas ele fez fortuna investindo com dinheiro emprestado.”

Sim, é verdade. Mas seria hipocrisia? Eu não vejo assim.

Para o investidor profissional que conhece a trajetória de Buffett, não é nenhuma novidade que Buffett tenha feito muito dinheiro usando o float das seguradoras. Ele fala isso exaustivamente em suas cartas há mais de 50 anos. Sempre foi transparente. E essa transparência dá contexto para o profissional que busca entender como ele alcançou seus resultados.

Mas Buffett não fala apenas para profissionais especializados. Hoje ele é capa de um jornal, amanhã ele está na televisão, depois de amanhã ele aparece em uma revista... Buffett tem um alcance que vai muito além do mundo financeiro. Buffett fala para o grande público.

O grande público é a pessoa comum que está vendendo o almoço para pagar o jantar. Ele olha para o velhinho que todos dizem ser o guru das finanças e quer respostas. Ele quer parar de ter que trabalhar 12 horas por dia por um salário mínimo e poder ter um pouco mais de conforto. Ele quer poder dar um brinquedo novo para o filho e levar a esposa para jantar em um lugar legal. Quem sabe até ter um carro?

Então o que o cara conhecido como "Oráculo" deve falar para essa pessoa comum? Que fez fortuna operando alavancado? A pessoa comum não sabe alocar capital como Buffett. E mesmo para aqueles que são bons investidores é muito difícil pegar dinheiro nas condições que Buffett consegue. Então eu acho que seria uma grande tragédia se Buffett saisse por aí vocalizando o valor que a alavancagem teve na sua carreira.

Eu sempre gostei da maneira como Buffett é conectado com a realidade apesar da sua posição. Ele entende perfeitamente que seu mundo não é o mundo do resto do mundo. E passa mensagens fáceis de entender e que podem ter grande impacto na vida da pessoa comum. Quem não entende a idéia de não pegar dinheiro emprestado? Quem não entende a idéia de ter uma vida sem ostentações? É simples, é senso comum e é construtivo!

Ás vezes tenho a impressão que esse senso de realidade falta em muito círculos que acompanho do mercado financeiro brasileiro. Algumas iniciativas, como a de reduzir as taxas dos fundos cobradas pelos grandes bancos, me deixam esperançoso. 

Mas outras vezes vejo profissionais em discussões muito distantes da realidade do público brasileiro. Qual é o valor de falar em escolher fatores de risco para um público que sequer sai da poupança? Qual é o valor de atacar a renda variável em um ambiente de juros como o atual? Isso é descolamento da realidade.

E em um ambiente onde os profissionais se descolam da realidade, os amadores oportunistas florescem. E quando os amadores oportunistas florescem, infelizmente, o grande público padece.

Vamos trabalhar juntos para que isso aconteça cada vez menos.


Stay cool,
Don Black


*O amigo The Twitter Investor (@thettinvestor) publicou uma tradução bacana do texto "The Superinvestors of Graham and Doddsville" que pode ser lida aqui

Tuesday, September 10, 2019

Textos Épicos: Carta aos Acionistas da Amazon, 1997


Para os nossos acionistas:

A Amazon.com superou muitos marcos em 1997: até o fim do ano, nós servimos mais de 1.5 milhão de clientes, gerando um crescimento de receitas de  838% para $147.8 milhões, e ampliamos nossa liderança no mercado apesar da agressiva entrada dos competidores.

Mas esse é o Dia 1 para a internet e, se nós executarmos bem, para a Amazon.com. Hoje, o comércio online economiza dinheiro e um tempo precioso para os clientes. Amanhã, através da personalização, o comércio online vai acelerar o próprio processo de descoberta. A Amazon.com usa a internet para criar valor real para os seus consumidores e, fazendo isso, espera criar uma marca duradoura, mesmo em mercados grandes e estabelecidos.

Nós temos uma janela de oportunidade a medida que grandes participantes mobilizam recursos para buscar oportunidades online e os clientes, novos nas compras online, são receptivos para formar novos relacionamentos. O cenário competitivo continua a evoluir em um ritmo acelerado. Muitos grandes participantes se mudaram para a internet com boas ofertas e dedicaram consideráveis recursos e energia para construir reconhecimento, tráfego e vendas. Nosso objetivo é de nos movermos rapidamente para solidificar e ampliar nossa posição atual enquanto começamos a buscar as oportunidades do comércio online em outras áreas. Nós vemos oportunidades substanciais nos grandes mercados que estamos focando. Essa estratégia não vem sem risco: ela requer sérios investimentos e grande execução contra as empresas líderes estabelecidas.

Tudo Se Trata do Longo Prazo

Nós acreditamos que uma medida fundamental do nosso sucesso vai ser o valor para o acionista que nós criamos no longo prazo. Esse valor vai ser um resultado direto da nossa habilidade de ampliar e solidificar nossa posição atual de liderança no mercado. Quanto mais forte for nossa liderança de mercado, mais poderoso vai ser nosso modelo econômico. Liderança de mercado pode se traduzir diretamente em maiores vendas, maior lucratividade, maior giro de capital e, correspondentemente, melhores retornos sobre o capital investido.

Nossas decisões tem refletido esse foco consistentemente. Primeiro nós nos medimos em termos das métricas que são mais indicativas da nossa liderança de mercado: crescimento de clientes e vendas, o quanto nossos clientes continuam comprando da gente, e a força da nossa marca. Nós investimos e vamos continuar investindo agressivamente em expandir e alavancar nossa base de clientes, marca e infraestrutura a medida que nos movemos para estabelecer uma franquia duradoura.

Por que nossa ênfase é no longo prazo, nós podemos tomar decisões e ponderar tradeoffs diferentemente de algumas companhias. Dessa forma, nós queremos dividir com você nossa abordagem fundamental de gestão e tomada de decisões para que você, nosso acionista, possa confirmar que é consistente com a sua filosofia de investimento:

  • Nós vamos continuar a focar incansavelmente nos nossos clientes.
  • Nós vamos continuar a tomar decisões de investimentos à luz das considerações de liderança de mercado a longo prazo, ao invés de considerações de lucratividade de curto prazo ou reações de curto prazo de Wall Street.
  • Nós vamos continuar medindo nossos programas e a efetividade dos nossos investimentos analiticamente, para descartar aqueles que não fornecem retornos aceitáveis, e para intensificar nosso investimento naqueles que funcionam melhor. Nós vamos continuar a aprender tanto dos nossos sucessos quando dos nossos fracassos.
  • Vamos tomar decisões de investimentos ousadas, e não tímidas, onde nós enxergarmos uma probabilidade suficiente de obter vantagens de liderança de mercado. Alguns desses investimentos vão valer a pena, outros não, e nós vamos ter aprendido uma nova e valiosa lição em qualquer um dos casos.
  • Quando forçados a escolher entre otimizar a aparência da nossa contabilidade reportada e maximizar o valor presente do fluxo de caixa futuro, nós vamos escolher o fluxo de caixa.
  • Nós vamos compartilhar nosso processo de pensamento estratégico com você quando nós tomarmos decisões ousadas (a medida que as pressões competitivas permitirem), para que você possa avaliar por si mesmo se estamos fazendo investimentos racionais para liderança de longo prazo.
  • Nós vamos trabalhar duro para gastarmos com sabedoria e mantermos nossa cultura de operação enxuta. Nós entendemos a importância de reforçar continuamente a cultura de consciência de custos, particularmente em um negócio que incorre em perdas líquidas.
  • Nós vamos equilibrar nosso foco em crescimento com ênfase em rentabilidade de longo prazo e gestão de capital. Nesse estágio, nós escolhemos priorizar o crescimento porque nós acreditamos que escala é um elemento central para alcançar o potencial do nosso modelo de negócios.
  • Nós vamos continuar a focar em contratar e reter funcionários versáteis e talentosos, e continuar a atrelar suas remunerações à opções de ações ao invés de dinheiro. Nós sabemos que nosso sucesso vai ser amplamente afetado pela nossa habilidade de atrair e reter uma base de funcionários motivados, onde cada um destes deve pensar como, e consequentemente deve agir como, um dono.

Nós não somos tão ousados a ponto de afirmar que o que está acima é a filosofia de investimento “certa”, mas é a nossa, e nós seriamos negligentes se nós não fossemos claros na abordagem que tivemos e que vamos continuar a ter.

Com essa fundação, eu gostaria de passar agora para uma revisão do nosso foco de negócios, nosso progresso em 1997, e nossa visão para o futuro.

Obsessão Com Clientes

Desde o início, nosso foco tem sido em oferecer um valor atraente para nossos clientes. Nós percebemos que a Web era, e ainda é, o grande mundo da espera. Sendo assim, nós decidimos oferecer aos clientes algo que eles simplesmente não poderiam ter de nenhuma outra maneira, e começamos a servi-los com livros. Nós trouxemos para eles uma seleção muito maior do que seria possível em uma loja física (nossa loja ocuparia hoje seis estádios de futebol), e apresentamos isso em um formato útil, fácil de procurar e fácil de encontrar, em uma loja aberta 365 dias por ano, 24 horas por dia. Nós mantivemos um foco obstinado em melhorar a experiência de compras, e em 1997 melhoramos nossa loja substancialmente. Nós agora oferecemos para nossos clientes vale-presente, compras com apenas um click, e muito mais avaliações, conteúdo, opções de pesquisa e recursos de recomendação. Nós reduzimos dramaticamente os preços, assim aumentando o valor para o cliente. Boca a boca continua sendo uma poderosa ferramenta de aquisição de clientes, e nós estamos agradecidos pela confiança que nossos clientes depositaram em nós. Compras recorrrentes e boca a boca se combinaram para fazer da Amazon.com a líder do mercado em vendas online de livros.

Sob qualquer métrica, a Amazon.com percorreu um longo caminho em 1997:

  • As vendas cresceram de $ 15.7 milhões em 1996 para $ 147.8 milhões – um aumento de 838%
  • Número de contas de clientes cresceu de 180,000 para 1,510,000 – um crescimento de 738%
  • O percentual de compras recorrentes cresceu de pouco mais de 46% no quarto trimentre de 1996 para mais de 58% no mesmo período em 1997
  • Em relação ao alcance de audiência, de acordo com a Media Metrix, nosso site pulou da posição 90 do ranking para o top 20
  • Nós estabelecemos relacionamentos de longo prazo com muitos parceiros estratégicos importantes, incluindo America Online, Yahoo!, Excite, Netscape, GeoCities, AltaVista, @Home, e Prodigy
Infraestrutura

Durante 1997, nós trabalhamos duro para expandir nossa infraestrutura de negócios para suportar esses níveis de tráfego, vendas e serviços muito elevados:

  • A base de funcionários da Amazon.com cresceu de 158 para 614, e nós fortalecemos significativamente nosso time de executivos
  • A capacidade do centro de distribuição cresceu de 4,600 m2 para 26,500 m2, incluindo a expansão de 70% das nossas instalações em Seattle e do lançamento do nosso segundo centro de distribuição em Delaware em Novembro
  • Estoque subiu para mais de 200,000 títulos no fim do ano, permitindo com que melhorássemos a disponibilidade para nossos clientes
  • Nossos saldos de caixa e investimentos no final do ano eram de $ 125 milhões, graças ao nosso IPO em maio de 1997 e ao nosso empréstimo de $ 75 milhões, nos proporcionando uma flexibilidade estratégica substancial


Nossos Funcionários

O sucesso do ano passado é o produto de um grupo talentoso, inteligente e esforçado, e eu tenho muito orgulho em ser parte desse time. Estabelecer altos padrões para nossas contratações tem sido, e vai continuar sendo, o elemento mais importante do sucesso da Amazon.com

Não é fácil trabalhar aqui (quando eu entrevisto as pessoas eu digo para elas, “Você pode trabalhar duro, por muitas horas ou de forma inteligente, mas na Amazon.com você não pode escolher duas das três.”), mas nós estamos trabalhando para construir algo importante, algo que importa para nossos clientes, algo que nós poderemos contar para nossos netos. Essas coisas não são fáceis de serem medidas. Nós temos uma enorme sorte de ter esse grupo de funcionários dedicados cujo sacrifício e paixão constrõem a Amazon.com.

Objetivos para 1998

Estamos nos estágios iniciais de aprender como trazer nosso valor para os consumidores através do comércio online. Nosso objetivo continua sendo solidificar e ampliar nossa marca e nossa base de clientes. Isso requer investimento contínuo em sistemas e infraestrutura para oferecer excepcional conveniência para o cliente, seleção e serviço a medida que crescemos. Nós estamos planejando adicionar música na nossa oferta de produtos, e ao longo do tempo nós acreditamos que outros produtos podem ser investimentos prudentes. Nós também acreditamos que existem oportunidades significativas para melhor servir nossos clientes internacionais, como reduzir o tempo de entrega e melhor adaptar a experiência do cliente. Para ter certeza, uma grande parte do nosso desafio vai estar não em achar novas maneiras de expandir nosso negócio, mas em priorizar nossos investimentos.

Nós agora sabemos muito mais sobre comércio online do que quando a Amazon.com foi fundada, mas nós ainda temos muito a aprender. Apesar de sermos otimistas, nós temos que continuar vigilantes e manter um senso de urgência. Os desafios e obstáculos que nós vamos encarar para transformar nossa visão de longo prazo da Amazon.com em realidade são muitos: competidores capitalizados, capazes e agressivos; desafios de crescimento consideráveis e riscos de execução; os riscos de expansão geográfica e de produtos; e a necessidade de grandes e contínuos investimentos para atender a uma oportunidade de mercado em expansão. No entanto, como já falamos bastante, a venda online de livros, e o comércio online em geral, devem se provar um mercado muito amplo, e é provável que várias empresas tenham benefícios significativos. Nós nos sentimos bem pelo que já fizemos, e ainda mais animados sobre o que queremos fazer.

1997 foi de fato um ano incrível. Nós na Amazon.com somos agradecidos aos nossos clientes pelos seus negócios e confiança, a cada um de nós mesmos por nosso trabalho duro, e aos nossos acionistas pelo seu apoio e encorajamento.

Jeffrey P. Bezos 

Founder and Chief Executive Officer

Amazon.com, Inc.





Sunday, September 8, 2019

Modelo Mental do Don Black: O Viés da Consistência e Comprometimento


Caso você não saiba o que é um modelo mental, clique aqui

Esse texto é sobre o primeiro modelo mental do blog: o viés da consistência e comprometimento.

Eu mantenho um resumo de todos os meus modelos mentais e coloquei uma versão simplificada deste resumo no fim do post. Assim, se você quiser simplificar sua vida e não ler o texto todo você pode ir lá para o final e ficar com o resumo. Deve ser o suficiente para entender a idéia.

Mas se você quiser ler tudo, seja bem vindo(a):

INTRODUÇÃO - Uma breve estória da minha infância

Toda família tem o seu membro mais teimoso. Na família de um dos meus melhores amigos esse sujeito era seu avô João Carlos a quem eu, carinhosamente, chamo de Tio Jão desde que sou criança. As memórias que tenho da época que íamos na casa do Tio Jão são as melhores da minha infância. O Tio Jão tinha construido uma bela casa no alto de uma montanha em uma área legal da cidade. A gente brincava no enorme terreno da casa olhando as luzes da cidade lá embaixo e nos sentindo em um castelo lá no alto.

Tio Jão adorava! Brincava que era o dono da montanha e falava para quem quisesse ouvir que os amigos dos seus netos também eram seus netos e os amigos dos seus filhos também eram seus filhos. E dizia que já que tinha tantos netos e tantos filhos, não fazia sentido morar em lugar pequeno. Ele precisava de uma montanha só pra ele.

A medida que o tempo foi passando as coisas foram se complicando. Os netos cresceram, alguns parentes se mudaram e outros estavam simplesmente sempre ocupados. Algumas outras pessoas começaram a aparecer na montanha do Tio Jão que, a essa altura, já não era só dele. E foi quando seus filhos tentaram faze-lo se mudar.

Queriam que Tio Jão e Tia Néia, sua esposa, fossem para um apartamento mais perto do resto da família. Mas Tio Jão maldizia a decisão de morar em apartamentos. “Quem mora em lata é sardinha. Tubarão nasce e morre no oceano”, era o que ele falava. A montanha era seu oceano e Tio Jão era um tubarão. Ou pelo menos assim ele via as coisas.

Pouco antes de o Tio Jão falecer, a vida da sua família estava caótica. Tio Jão estava doente o suficiente para precisar de assistência regular e lúcido o suficiente para continuar irredutível nas suas decisões. O que antes era a montanha do Tio Jão tinha se tornado um morro de traficantes. Como Tio Jão era morador antigo, ainda era permitido que transitasse por ali. Não sem a benção dos novos chefes, claro.

Então para chegar na casa do Tio Jão era preciso acender a luz do carro, se identificar para uns garotos de fuzis e pedir autorização para subir e descer. Os filhos do Tio Jão, que se revezavam para levarem ele aos médicos, conviviam com essa situação. Todo o resto – netos e, agora, bisnetos – já tinham deixado de ir lá. Eu inclusive.

Nada do que fazia a casa do Tio Jão tão especial existia mais. Exceto por ele mesmo e pela Tia Néia, que poderiam continuar existindo em qualquer outra moradia. Mas para o Tio Jão não existia outra moradia. Ele precisava de espaço, aquela era sua montanha e ponto final.

Tio Jão não conseguia agir diferente diante da nova realidade. Tio Jão era assim, um cara insuportavelmente teimoso. Só mais tarde eu vim a entender que Tio Jão era apenas uma vítima.

Assim como todos nós, Tio Jão era uma vítima do viés da Consistência e Comprometimento.

***

"O que eu estou dizendo aqui é que a mente humana se parece muito com o óvulo humano, e que o óvulo humano tem um dispositivo de fechamento. Quando o espermatozóide entra, ele se fecha para que o próximo não possa entrar. A mente humana tem uma tendência do mesmo tipo." Charlie Munger

O Viés da Consistência e Comprometimento é a tendência a respondermos e agirmos consistentemente de forma a nos mantermos alinhados com um comportamento, escolha ou visão assumidos anteriormente.

É possível pensar no viés da consistência e comprometimento como uma defesa humana. Sim, uma defesa natural contra as consequências da inconsistência. A inconsistência é um traço de personalidade indesejado e associado a uma pessoa confusa, hipócrita ou indecisa. Por outro lado, a pessoa consistente é tida como alguém estável e racional.

Nosso cérebro entende a importância que a consistência tem para nossa vida e por isso tenta ajudar nos mantendo consistentes. Na verdade nosso cérebro vai além! Ele tenta nos manter consistentes poupando nossa energia. Para fazer isso, nosso cérebro gera respostas consistentes e automáticas. Nas palavras do psicólogo Robert Cialdini:

“Nos proporciona um método conveniente, eficiente e sem muito esforço para lidar com as complexas situações diárias que demandam muito das nossas energias e capacidades mentais. Não é difícil entender, então, porquê a consistência automática é uma reação difícil de frear. Ela nos oferece uma forma de fugir dos rigores do pensamento contínuo.”

Assim, sem precisar gastar energia ponderando cada argumento, cada dado e cada fato que esbarramos no dia a dia, podemos seguir interagindo com as pessoas sem trair nossos velhos posicionamentos.

O VIÉS NO CONTEXTO DOS INVESTIMENTOS

Eu conheço um rapaz nos Estados Unidos que esta anunciando a próxima recessão desde 2011. Qualquer pessoa razoável haveria de esperar que esse sujeito tivesse suavizado suas opiniões ao longo dos últimos 8 anos de bull market. Ao invés disso, ele escalou.

Lembro que as coisas começaram com uma opinião pessimista em um papo entre amigos. Pouco tempo depois a opinião virou um post despretensioso na rede social. Em pouco tempo aquilo que começou como uma breve opinião pessimista já tinha outras proporções. Com menos de um ano do primeiro post e sua tese já tinha ganhado musculatura com gráficos e opiniões de especialistas. 

Para todo argumento contrário ele remetia à 2007. Então pra ele, 2011 era como 2007. Depois 2012 era como 2007. E 2013 era como 2007. E assim ele está até 2019. Curiosamente ele ganhou muitos seguidores ao longo do caminho e hoje já é um permabear referência.

Esse rapaz caiu na areia movediça do viés da consistência sem se dar conta, que é exatamente como as coisas costumam acontecer. O grande passo dado para a areia movediça aconteceu quando um investidor famoso reencaminhou um dos seus primeiros posts endossando a sua opinião bear. Do dia pra noite ele ganhou milhares de seguidores, quase todos pessimistas também. Daí em diante sua vida foi alimentar essa legião de séquitos com informações apocalípticas. E assim, sem perceber, ele criou uma identidade. Aquilo se tornou quem ele era.

"Sempre que uma pessoa assume uma posição pública surge o impulso de manter essa posição para parecer uma pessoa consistente." Robert Cialdini

Ter esse tipo de postura pode ter lá suas vantagens. Esse sujeito hoje está famoso. Anunciar o fim do mundo virou sua especialidade e, como nós sabemos, anunciar o fim do mundo dá audiência. Então ele volta e meia aparece na mídia. Para muitas pessoas isso é suficiente. Já vi gente fazendo coisa muito pior em busca da fama. Mas alguém que busca performance em investimentos não pode se dar ao luxo de ter um pensamento fixo.

O grande perigo do viés da consistência e comprometimento é ignorar evidências contrárias. O investidor deve ter a humildade de reconhecer que pode estar errado e ser flexível para ajustar a tese de investimentos se necessário for. Se apaixonar por uma ação pode ser terrível já que, tal qual é nas relações humanas, nem sempre ela corresponde.

Outra situação de interesse para o investidor é quando o viés da consistência e comprometimento acomete o executivo de uma empresa. Um exemplo conhecido é o famoso guidance, onde o executivo diz para o mercado o que esperar da empresa na próxima divulgação de resultados. No afã de se manter consistente e diante do comprometimento público com um mercado que pune decepções de curto prazo, o executivo apela a todo tipo de artifício.

“A pressão por números prejudica o julgamento e rouba a dignidade... faz com que pessoas boas e inteligentes façam coisas eticamente idiotas e as aproximam de um colapso ético.” Marianne Jennings, 'The Seven Signs of Ethical Collapse'

Claro, um eventual colapso ético para alcançar um número não pode ser atribuido apenas ao viés da consistência e comprometimento. Outros vieses e outros incentivos entram em jogo. E assim é não apenas com os colapsos éticos mas com os comportamentos em geral. Várias forças atuam juntas e vão nos guiando sem percebermos. 

E é por isso que os modelos mentais fazem parte de uma malha, se conectando e interagindo uns com os outros. Vou ficando por aqui com um breve resumo que uso em todos os meus modelos mentais.

***

MODELO MENTAL DO DON BLACK

Nome: Viés da Consistência e Comprometimento

O que é: tendência a respondermos e agirmos consistentemente de forma a nos mantermos alinhados com um comportamento, escolha ou visão assumidos anteriormente.

Risco: tomar decisões erradas por ignorar/evitar evidências contrárias

Comportamentos preventivos: 

Manter a mente aberta para o contraditório, manter a humildade, reconhecer que posso cometer erros, reconhecer que há coisas que desconheço e sou ignorante, ser flexível

Medidas preventivas:

- buscar o contraditório, fazendo o advogado do diabo ao testar minhas hipóteses com a visão de outros investidores (seleto grupo) / profissionais da empresa / profissionais das empresas concorrentes / fornecedores / clientes / usuários / ex-funcionarios / especialistas da indústria

- manter um diário de investimentos e reavaliar as teses regularmente

- observar o comportamento da gestão da empresa diante dos guidances (ex: nível de atividade de M&A, contabilidade criativa, etc)



Stay cool,

Don Black