A EXAME E A MANIPULAÇÃO COGNITIVA
Dia desses
a revista Exame fez uma matéria com um chamativo título “Prejuízo, depressão e
morte no day trade”. Em linhas gerais a matéria fala sobre um rapaz que se
matou por dívidas acumuladas em operações de day trade e o drama da sua esposa
em lidar não só com a perda do marido mas também com as dívidas deixadas por
ele.
Já escrevi
neste blog o que penso sobre a responsabilidade dos grandes comunicadores do
mercado financeiro no trato com o grande público. E o bom é que a matéria da Exame tem elementos
importantes como o alerta para alguns
vieses, o encantamento do ganho fácil e as imagens que charlatões passam nas
redes sociais.
Mas por
outro lado a matéria soou como demonização irrestrita da prática do day trade. Sem
contrapontos e sem ponderações, apenas um sujeito de família que se aventurou
no day trade e se matou no final. Uma simplificação grosseira e um pouco
apelativa. É como tentar dissuadir
alguém de entrar em uma bandinha de rock porque Kurt Cobain, Chris Cornell e
Chester Bennington se mataram.
A matéria
da Exame é um clássico caso de manipulação cognitiva. Um pouco de narrativa bem
construida para ativar o poder do storytelling, uma pitada de estudo científico
para explorar o viés da autoridade e um bode expiatório - o day trade - para
satisfazer a busca associativa que nosso cérebro faz por relações de
causa-efeito.
A história
do rapaz é triste, disso não há dúvidas. Assim que seu caso foi divulgado
tantos outros casos de pessoas que dilapidaram seus patrimônios se aventurando
no mercado financeiro vieram a tona. Alguns pedidos de socorro e vaquinha
online pipocaram no twitter. Qualquer pessoa de bom senso entende que casos assim devem ser
evitados. Mas ninguém cura artrite cortando fora a mão.
ED THORP E O PROGRESSO PELO PROCESSO
Agora é a
minha vez de apelar para o storytelling. Mas fiquem tranquilos porque a estória que vou contar também é real.
Edward
Thorp é um grande matemático americano que brilhou tanto em Las Vegas quanto em
Wall Street, se é que é dá para separar um do outro. Entre seus feitos, Thorp
descobriu que é possível reverter a vantagem da casa no blackjack a partir da
contagem de cartas.
Como Thorp era
um acadêmico pouco convencional ele preferiu não escrever uma dissertação sobre o tema.
Ao invés disso ele saiu numa sexta-feira da faculdade onde dava aulas, foi para casa, fez as malas, colocou
uma roupa bacana e pegou um vôo para passar o fim de semana em Las Vegas. Thorp
foi aplicar sua teoria na prática.
E o que
vocês acham que aconteceu nesse fim de semana? Que Thorp hipotecou a casa e
colocou todo o seu dinheiro em uma mesa de blackjack? Para quem só pensa em
dinheiro no bolso, nada aconteceu. Thorp chegou, viu como o jogo funcionava,
colocou pouco dinheiro, testou seu método e foi embora. Foi embora nem mais
rico e nem mais pobre do que quando chegou. Mas Thorp aprendeu. E esse processo
se repetiu por meses enquanto Thorp seguia aprendendo e refinando sua
estratégia.
“A chave foi dar um passo de cada vez, adicionando um nível de dificuldade apenas depois que eu estava confortável e relaxado com aquilo que eu já estava fazendo. O que parecia árduo acabou ficando fácil.” Ed Thorp
A vida real
traz complexidades inesperadas e Thorp sabe disso. A teoria da contagem de
cartas funcionava bem no seu computador mas isso não era o bastante. Thorp
sabia que precisava se expor no cassino. Isso porque no cassino existe o
cansaço de memorizar cartas e calcular probabilidades por horas a fio. Existe o medo de apanhar e ser
jogado pra fora do cassino por um segurança brutamontes que jura que você está
trapaceando. Existe a tentação de aceitar um ou outro uísque, e a dificuldade
de não deixar o álcool afetar a concentração. Enfim, existe o inesperado.
Thorp sabia
que na construção do seu processo ele tinha que incorporar essas complexidades.
Complexidades que ele ainda não tinha como avaliar quando foi para o cassino
pela primeira vez. Por isso o método foi sendo construído pouco a pouco. E foi só
a medida que Thorp foi refinando seu processo que ele passou a ir levantando
suas apostas.
DE VOLTA AO
DAY TRADE
“Esse plano, de apostar apenas em um nível em que eu estava emocionalmente confortável e não avançando até que eu estivesse pronto, me permitiu aplicar meu método com uma precisão calma e disciplinada. Essa lição recebida nas mesas de blackjack viriam a se provar inestimáveis durante a minha vida como investidor, a medida que as apostas se tornaram ainda maiores.” Ed Thorp
Eu não faço
day trade. Mas sendo bem honesto, isso não tem nenhuma importância aqui. O que
tem importância é o seguinte: day trade não mata ninguém. Indo além, day trade
também não tira o sono de ninguém. Não acredita em mim? Então faça o seguinte:
pegue 10 reais, abra seu home broker e faça o day trade que você quiser. Apenas
10 reais na operação e nada mais. E aí, ficou tenso?
Meu ponto é
o seguinte: a tensão e o perigo para o especulador/investidor vem da tolerância à perda
máxima possível na operação e da probabilidade dessa perda acontecer. Simples
mas difícil, eu sei.
Ed Thorp,
que não é bobo, sabe que quanto menos se conhece sobre o campo de jogo, maior a
probabilidade dessa perda máxima acontecer. E é por isso que ele não hipotecou
sua casa quando foi no cassino pela primeira vez. E é por isso também que ele
foi aumentando as apostas a medida que seu processo foi ficando mais robusto.
Mas na vila
comportamental dos gananciosos todo mundo quer pegar dinheiro emprestado para
ficar rico já na primeira viagem ao cassino. É irônico que no afã de enriquecer
tanta gente siga a melhor receita de empobrecimento que exista.
Se você tem
pressa, vá devagar! Pense em qual filosofia de investimento combina com você, esboce
um processo a partir dessa filosofia, coloque ele em prática estando
confortável com a máxima perda possível, observe o resultado, estude, ajuste o
processo, coloque em prática novamente estando confortável com a máxima perda
possível e siga isso até o fim da sua vida. É preciso amar o processo!
Mas se você
quiser ignorar tudo o que eu escrevi aqui, siga apenas uma única regra que vou lhes dizer. Faça o que quiser, como quiser, mas siga sempre essa regra: assuma
que a pior perda possível vai acontecer e se pergunte se você é capaz de tolerar
essa perda. Se a resposta for “não”, então reduza sua aposta.
E é assim
que eu salvo vidas.
Stay cool,
Don Black
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