Thursday, October 3, 2019

O vilão da vez (daytrade), a construção de um processo e a regra de ouro


A EXAME E A MANIPULAÇÃO COGNITIVA

Dia desses a revista Exame fez uma matéria com um chamativo título “Prejuízo, depressão e morte no day trade”. Em linhas gerais a matéria fala sobre um rapaz que se matou por dívidas acumuladas em operações de day trade e o drama da sua esposa em lidar não só com a perda do marido mas também com as dívidas deixadas por ele.

Já escrevi neste blog o que penso sobre a responsabilidade dos grandes comunicadores do mercado financeiro no trato com o grande público. E o bom é que a matéria da Exame tem elementos importantes  como o alerta para alguns vieses, o encantamento do ganho fácil e as imagens que charlatões passam nas redes sociais.

Mas por outro lado a matéria soou como demonização irrestrita da prática do day trade. Sem contrapontos e sem ponderações, apenas um sujeito de família que se aventurou no day trade e se matou no final. Uma simplificação grosseira e um pouco apelativa.  É como tentar dissuadir alguém de entrar em uma bandinha de rock porque Kurt Cobain, Chris Cornell e Chester Bennington se mataram.

A matéria da Exame é um clássico caso de manipulação cognitiva. Um pouco de narrativa bem construida para ativar o poder do storytelling, uma pitada de estudo científico para explorar o viés da autoridade e um bode expiatório - o day trade - para satisfazer a busca associativa que nosso cérebro faz por relações de causa-efeito.

A história do rapaz é triste, disso não há dúvidas. Assim que seu caso foi divulgado tantos outros casos de pessoas que dilapidaram seus patrimônios se aventurando no mercado financeiro vieram a tona. Alguns pedidos de socorro e vaquinha online pipocaram no twitter. Qualquer pessoa de bom senso entende que casos assim devem ser evitados. Mas ninguém cura artrite cortando fora a mão.

ED THORP E O PROGRESSO PELO PROCESSO

Agora é a minha vez de apelar para o storytelling. Mas fiquem tranquilos porque a estória que vou contar também é real.

Edward Thorp é um grande matemático americano que brilhou tanto em Las Vegas quanto em Wall Street, se é que é dá para separar um do outro. Entre seus feitos, Thorp descobriu que é possível reverter a vantagem da casa no blackjack a partir da contagem de cartas.

Como Thorp era um acadêmico pouco convencional ele preferiu não escrever uma dissertação sobre o tema. Ao invés disso ele saiu numa sexta-feira da faculdade onde dava aulas, foi para casa, fez as malas, colocou uma roupa bacana e pegou um vôo para passar o fim de semana em Las Vegas. Thorp foi aplicar sua teoria na prática.

E o que vocês acham que aconteceu nesse fim de semana? Que Thorp hipotecou a casa e colocou todo o seu dinheiro em uma mesa de blackjack? Para quem só pensa em dinheiro no bolso, nada aconteceu. Thorp chegou, viu como o jogo funcionava, colocou pouco dinheiro, testou seu método e foi embora. Foi embora nem mais rico e nem mais pobre do que quando chegou. Mas Thorp aprendeu. E esse processo se repetiu por meses enquanto Thorp seguia aprendendo e refinando sua estratégia.

“A chave foi dar um passo de cada vez, adicionando um nível de dificuldade apenas depois que eu estava confortável e relaxado com aquilo que eu já estava fazendo. O que parecia árduo acabou ficando fácil.” Ed Thorp

A vida real traz complexidades inesperadas e Thorp sabe disso. A teoria da contagem de cartas funcionava bem no seu computador mas isso não era o bastante. Thorp sabia que precisava se expor no cassino. Isso porque no cassino existe o cansaço de memorizar cartas e calcular probabilidades por horas a fio. Existe o  medo de apanhar e ser jogado pra fora do cassino por um segurança brutamontes que jura que você está trapaceando. Existe a tentação de aceitar um ou outro uísque, e a dificuldade de não deixar o álcool afetar a concentração. Enfim, existe o inesperado.

Thorp sabia que na construção do seu processo ele tinha que incorporar essas complexidades. Complexidades que ele ainda não tinha como avaliar quando foi para o cassino pela primeira vez. Por isso o método foi sendo construído pouco a pouco. E foi só a medida que Thorp foi refinando seu processo que ele passou a ir levantando suas apostas.

DE VOLTA AO DAY TRADE

“Esse plano, de apostar apenas em um nível em que eu estava emocionalmente confortável e não avançando até que eu estivesse pronto, me permitiu aplicar meu método com uma precisão calma e disciplinada. Essa lição recebida nas mesas de blackjack viriam a se provar inestimáveis durante a minha vida como investidor, a medida que as apostas se tornaram ainda maiores.” Ed Thorp

Eu não faço day trade. Mas sendo bem honesto, isso não tem nenhuma importância aqui. O que tem importância é o seguinte: day trade não mata ninguém. Indo além, day trade também não tira o sono de ninguém. Não acredita em mim? Então faça o seguinte: pegue 10 reais, abra seu home broker e faça o day trade que você quiser. Apenas 10 reais na operação e nada mais. E aí, ficou tenso?

Meu ponto é o seguinte: a tensão e o perigo para o especulador/investidor vem da tolerância à perda máxima possível na operação e da probabilidade dessa perda acontecer. Simples mas difícil, eu sei.

Ed Thorp, que não é bobo, sabe que quanto menos se conhece sobre o campo de jogo, maior a probabilidade dessa perda máxima acontecer. E é por isso que ele não hipotecou sua casa quando foi no cassino pela primeira vez. E é por isso também que ele foi aumentando as apostas a medida que seu processo foi ficando mais robusto.

Mas na vila comportamental dos gananciosos todo mundo quer pegar dinheiro emprestado para ficar rico já na primeira viagem ao cassino. É irônico que no afã de enriquecer tanta gente siga a melhor receita de empobrecimento que exista.

Se você tem pressa, vá devagar! Pense em qual filosofia de investimento combina com você, esboce um processo a partir dessa filosofia, coloque ele em prática estando confortável com a máxima perda possível, observe o resultado, estude, ajuste o processo, coloque em prática novamente estando confortável com a máxima perda possível e siga isso até o fim da sua vida. É preciso amar o processo!

Mas se você quiser ignorar tudo o que eu escrevi aqui, siga apenas uma única regra que vou lhes dizer. Faça o que quiser, como quiser, mas siga sempre essa regra: assuma que a pior perda possível vai acontecer e se pergunte se você é capaz de tolerar essa perda. Se a resposta for “não”, então reduza sua aposta.

E é assim que eu salvo vidas.

Stay cool,
Don Black

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