Thursday, August 29, 2019

Um alguém chamado Henry Singleton. Apenas Henry Singleton, sem PhD no final



"Henry Singleton tem o melhor histórico operacional e de uso de capital dos Estados Unidos... se alguém pegasse os 100 melhores graduados das escolas de negócios e fizesse uma combinação dos seus triunfos, seus feitos não seriam tão bons quanto os de Singleton", Warren Buffett, 1980

“o fracasso das escolas de negócios em estudar homens como Singleton é um crime. Ao invés disso, as escolas de negócios têm como modelo os executivos moldados no cortador de biscoitos da McKinsey”, Warren Buffett para John Train em The Money Masters

Dia desses eu tuitei uma das melhores estórias sobre alocação de capital que existe. Se você não leu, recomendo que leia aqui. Fato é que dessa estória surgiu um bate-papo interessante no meu DM. Era um dos papos que mais gosto, sobre alocação de capital. Como não poderia deixar de ser quando o assunto é alocação de capital, falei de Henry Singleton. Para meu espanto, meu colega não sabia quem era. Singleton certamente não se incomodaria. Era um cara discreto e fora dos padrões. Nunca buscou holofotes. Mas eu me incomodo. Me incomodo porque acredito que muitos investidores dão pouco valor a essa que é uma das principais qualificações de um executivo: saber alocar capital. E nisso talvez nenhum se compare a Henry Singleton.


PARTE I: A PARTE CHATA – SINGLETON, O PhD

A parte mais interessante da vida de Singleton foi a segunda metade da sua vida. Mas como não é possível ignorar os primeiros 40 anos da sua existência, vamos começar do começo. Durante seus primeiros 40 anos, Singleton se destacou como um brilhante matemático, engenheiro e cientista. E acredite quando eu digo: essa foi a parte menos interessante da sua vida. Fez graduação, mestrado e doutorado em engenharia elétrica no MIT. Além disso ganhou a medalha Putnam, prêmio concedido aos melhores estudantes de matemática dos Estados Unidos. De hobby, Singleton gostava de jogar xadrez. Era capaz de jogar xadrez as cegas, ou seja, memorizando as peças no tabuleiro. Jogava tão bem que chegou a ser rankeado a apenas 100 pontos do nível de um grande-mestre.

Depois de se tornar PhD, Singleton foi trabalhar como pesquisador em uma empresa chamada North American Aviation and Hughes Aircraft. Ficou lá pouco tempo, até receber uma oferta e ir para a gigante Litton Industries. Lá Singleton criou um sistema de orientação que até hoje é usado em aeronaves comerciais e militares. Singleton se tornou diretor da Litton e transformou sua unidade na maior divisão da empresa. Até que chegou um momento em que ele se encontrou sem saídas, já que não havia expectativa de substituir o lendário Thornton como CEO da Litton. Sua solução? Pedir as contas e fundar sua própria empresa. 

E aqui começa a melhor parte da vida de Singleton, aos 44 anos.

PARTE II: A PARTE LEGAL – SINGLETON, O EMPREENDEDOR   

Em julho de 1960, Henry Singleton saiu da Litton com seu amigo George Kozmetsky e juntos foram criar a Teledyne. Com 450,000 dólares eles compraram três pequenas empresas de eletrônicos e, graças a essa estrutura, conseguiram fechar um contrato com a marinha americana. No ano seguinte, em 1961, a Teledyne se tornou pública.

AQUISIÇÕES

A Teledyne virou pública durante a época de ouro dos conglomerados. Hoje os conglomerados são vistos como empresas pesadas e ineficientes mas na época os conglomerados eram os queridinhos do mercado. E como todo queridinho, suas ações eram negociados por altos múltiplos. Situação esta que acabou por criar uma chance de arbitragem. Os conglomerados passaram a usar suas próprias ações para comprar empresas menores e baratas. Uma vez que a empresa menor fosse absorvida pelo conglomerado, as ações do conglomerado disparavam ainda mais. Era uma profecia auto-realizável.

Singleton se aproveitou desse movimento.  Em 66, quando a Teledyne negociava a um PE de 40x, Singleton emitiu ações para comprar 20 empresas. No ano seguinte, com as ações negociadas a um PE de 50x, ele emitiu mais ações e comprou mais 30 empresas. E assim foi durante todo o período de aquisições. De 1961 até 1969 a Teledyne comprou 130 empresas. E sempre usando suas inflacionadas ações como moeda de compra.

Singleton fez várias aquisições, mas não como os outros conglomerados. Ele evitava situações de turnaround e buscava empresas lucrativas com bom posicionamento e de preferência em mercados de nicho. Singleton tinha a expectativa de manter os executivos das empresas adquiridas tocando as operações, fato que acontecia na maioria dos casos.

“Nós já ouvimos toda essa conversa de sinergia. Muitas dessas empresas já foram pelo ralo. Esses tipos que compram empresas mal administradas, as revitalizam e conseguem lucros instantâneos. Nós nunca reivindicamos isso. Nós tentamos comprar empresas boas, para início de conversa. Nós não achamos que existem super-homens que conseguem renova-las e transforma-las em empresas maravilhosas e muito lucrativas.”, Singleton

Em meados de 1969, as empresas que interessavam Singleton estavam mais caras do que nunca. Isso aconteceu em parte por causa da concorrência dos outros conglomerados e em parte porque já não haviam tantas empresas interessantes para serem compradas como antes. A solução então foi encerrar o processo de aquisições e, com isso, muitos executivos responsáveis por prospectar oportunidades de investimentos deixaram a Teledyne. O fato de que Singleton se recusava a pagar caro nas aquisições fez da Teledyne um dos primeiros conglomerados a parar de comprar. Daí em diante não houve mais nenhuma grande aquisição e nenhuma nova oferta de ações da Teledyne.

“Existem tremendos valores no mercado, mas para comprar ações e não empresas inteiras. Comprar empresas tende a levantar muito o preço de compra. Não se engane com pequenas ações sendo negociadas a pequenos múltiplos de 6 ou 7. Se você tentar comprar essas empresas inteiras o múltiplo vai ser mais como 12 ou 14. E os donos vão dizer, “Olha, se você não pagar isso, alguma outra pessoa vai.” E eles estão certos. Alguma outra pessoa vai. Então não há aquisições para a gente enquanto eles estiverem caros. Eu não vou pagar 15x o lucro.”, Singleton

Encerrada a fase de aquisições, pode-se dizer que Singleton soube aproveitar o cenário dos anos 60. O resultado desse período foi de tal ordem que de 61 até 71 a Teledyne viu suas vendas saírem de $ 4.5 milhões para $ 1.1 bilhão, seu lucro líquido sair de $ 100 mil para $ 32 milhões e seu lucro por ação saltar de $ 0.13 para $ 8.55.

GESTÃO

Sem novas compras a vista, Singleton passou a se concentrar em maximizar os resultados das subsidiárias. Mas Singleton não era um sujeito de seguir protocolos. Enquanto todos os conglomerados da época centralizavam as decisões operacionais e usavam palavras da moda como “sinergia” e “integração”, Singleton dava liberdade para os executivos trabalharem e evitava se envolver no operacional das empresas. Contanto que as empresas dessem resultados, ele não interferia. Mas e se o negócio desandasse? Bom, nesse caso ele fazia o que era preciso. Como foi com a Packard Bell:

A Packard Bell foi uma das aquisições de Singleton e uma das poucas a darem errado. Na época uma fabricante de televisão, a Packard Bell começou a ter problemas de performance diante da concorrência japonesa. Reconhecendo a perda de competitividade, Singleton fechou a unidade e a Packard Bell se tornou a primeira empresa americana do setor a fechar as portas. Todas as outras fecharam em seguida.

Em um belo dia Singleton se sentou com o CFO da Teledyne, Jerry Jerome, e os dois inventaram o chamado “retorno Teledyne”. O retorno Teledyne foi uma métrica que serviria de base para definir a remuneração dos gestores das companhias. A grande diferença do retorno Teledyne para as métricas de performance de Wall Street era que na Teledyne existia uma ênfase na geração de caixa. Não que o lucro não fosse importante, mas não era mais suficiente.

“Nossa atitude em relação a geração de caixa e gestão de ativos veio do nosso próprio processo de pensamento. Não é copiado. Depois de termos comprado uma série de negócios nós refletimos sobre os aspectos dos negócios. Nossa própria conclusão foi que a chave era o fluxo de caixa.”, Singleton

E se os executivos de Wall Street não concordassem? Bem, Singleton não estava nem aí.

“Se alguém quer acompanhar a Teledyne, ele deve se acostumar com o fato de que nossos lucros trimestrais vão balançar. Eles vão refletir o mundo real. Nossa contabilidade é pensada para maximizar o fluxo de caixa e não o lucro reportado. Suavizar o lucro reportado vai ter que ficar de lado.”, Singleton

Singleton instruia os executivos a melhorar as margens e manter os custos baixos. Em pouco tempo as companhias melhoraram o capital de giro e passaram a gerar muito caixa. Era tudo o que Singleton queria. Se por um lado a Teledyne tinha operações decentralizadas, por outro a alocação de capital estava toda nas mãos de Singleton. Então todo o caixa gerado pelas afiliadas voltava para a sede, onde cabia a Singleton decidir o que fazer com ele. 

E agora vamos a mais um show de Henry Singleton.

RECOMPRA DE AÇÕES

Entre 69 e 72 uma montanha de dinheiro foi sendo empilhada no balanço da Teledyne. Singleton procurava o que fazer com todo esse dinheiro ao mesmo tempo em que as ações da Teledyne iam afundando junto com o mercado. A Teledyne, cuja ação chegou a ser negociada por 40 dólares, estava por volta de 20. Ao longo da década ainda chegaria a apenas 8 dólares. Foi então que Singleton teve a idéia de iniciar um processo de recompra de ações.

Recomprar ações é muito comum hoje e já virou tema central de debate nos Estados Unidos. Mas a recompra não era bem recebida pelo investidores nos anos 70. Acima de qualquer coisa, uma recompra sinalizava falta de oportunidades e, em última análise, fraqueza. Wall Street não gostava. E mais uma vez naquilo que se tornaria sua marca registrada, Singleton não estava nem aí.

A primeira oferta de recompra foi para um milhão de ações a 20 dólares. E como o processo não era bem visto, a ação caiu logo depois da oferta. Para Singleton, se era interessante recomprar a 20 dólares então era ainda mais interessante recomprar a 14 dólares. Afinal, as unidades de negócio da Teledyne continuavam prósperas. Então ele fez uma nova oferta de recompra. A nova oferta ajudou a fazer a ação cair de novo, continuando um ciclo de queda de braço entre Singleton e o mercado. Nas palavras de Singleton:

“Em Outubro de 1972 nós fizemos uma oferta de recompra pra um milhão de ações e 8.9 milhões apareceram. Nós recompramos todas elas a 20 dólares e imaginamos ter sido uma casualidade e que não poderiamos fazer novamente. Mas ao invés de subir nossas ações cairam. Então continuamos recomprando. Toda vez que uma oferta de recompra se encerrava a ação caia mais e então nós faziamos uma oferta de recompra de novo.”, Singleton

Singleton fez algo jamais visto. Entre 72 e 84 a Teledyne fez um total de oito ofertas de recompra, tendo recomprado ao todo 90% das ações disponíveis. Foram 2.5 bilhões de dólares gastos em recompras.

“Nunca ninguém recomprou ações tão agressivamente.”, disse Munger em referência à Singleton

É interessante observar que o mesmo homem que passou os anos 60 emitindo ações, passou os anos 70 recomprando as ações. O comportamento pode ser diferente mas não há nada de incoerente. Pelo contrário. O que Singleton fez foi simplesmente comprar barato e vender caro. Singleton emitiu ações da Teledyne a um PE médio de 25 e recomprou a um PE médio de 8. E fez isso contrariando a convenção de Wall Street. E se alguém acha que esse movimento foi uma demonstração de market timing, fique com as palavras do próprio Singleton:

“Eu não acredito em todo esse absurdo de market timing. Apenas compre um valor muito bom e quando o mercado estiver pronto esse valor será reconhecido.”, Singleton

Singleton não recomprou ações com a cabeça de que ia acertar a virada do mercado. Sua mentalidade era simplesmente a de que as ações da Teledyne estavam baratas e portanto iriam subir em algum momento.

No final das contas, a medida que Singleton foi recomprando as ações a Teledyne seguiu aumentando seus lucros e vendas. O efeito da recompra com o excelente resultado operacional da Teledyne fez com que o lucro por ação saltasse de $ 8.55 em 1971 para $ 353.34 em 1984. Esse é o tipo de coisa que um gestor fora-de-série faz.

PORTFOLIO MANAGER

Ainda durante os anos 70, Singleton se viu na responsabilidade de gerir os ativos das seguradoras que a Teledyne detinha. Gerir o dinheiro das seguradoras era diferente de gerir o dinheiro do conglomerado todo porque o menor volume permitia fazer compras menores. O que ele fez então foi aproveitar o bear market dos anos 70 e ampliar a alocação em ações de 10% em 1975 para 77% em 1981. Mais de 70% do portfolio foi investido em apenas cinco ações, sendo 25% alocado em apenas uma empresa, a Litton Industries. Sim, a mesma em que Singleton tinha trabalhado antes de fundar a Teledyne.

“Eu senti que a Litton era um bom investimento. É bom comprar uma grande empresa com um bom negócio quando o preço está apanhando por causa de preocupações com um problema só. O problema da Litton não é um problema geral mas sim um problema isolado. Pra mim é difícil acreditar que os chefes de uma empresa de 3 ou 4 bilhões de dólares não são capazes de lidar com um problema isolado.”, Singleton

A verdade é que Singleton conhecia a Litton muito bem e por isso não viu problemas em alocar 25% do portfolio nela. A mesma coisa aconteceu com outros investimentos que ele fez em conglomerados e seguradoras, dois ramos que ele também conhecia bem.

“Assim como Warren e eu, ele se sentia confortável em concentrar e comprar apenas algumas poucas coisas que ele entendia bem.”, disse Munger sobre Singleton

O resultado da sua estratégia pode ser estimado pelo book value das subsidiárias do momento em que Singleton assumiu a gestão dos ativos, em 1975, até o momento em que ele iniciou o processo de sucessão, em 1985. No caso, um crescimento de 8x.

PARTE III: SINGLETON, O FAZENDEIRO

Em 1987 Singleton fez uma coisa inédita na história da Teledyne: pagou dividendos. Durante os anos 70 a Teledyne tinha sofrido muita pressão dos investidores para distribuir dividendos. Era comum que os grandes conglomerados distribuissem dividendos. Mais do que comum, era o procedimento padrão. E apesar de ter um balanço forte, a Teledyne não pagava. Para Singleton, não havia sentido em distribuir dividendos naquela época, fosse ou não o procedimento padrão. Para ele, a Teledyne não era um income stock e além disso rentabilizava o capital a uma taxa de 33% ao ano. Ou seja, seria melhor para o acionista que o dinheiro ficasse na empresa.

Mas em 1987 as coisas estavam diferentes. Exceto pelas seguradoras, boa parte das unidades de negócios vinha performando pior e os preços dos potenciais investimentos (ações de outras empresas e da própria Teledyne) estavam altos. Sem muitas alternativas para reinvestir o dinheiro, Singleton pagou o primeiro dividendo em 26 anos da Teledyne como empresa pública.

Entre 1986 e 1990, Singleton inovou mais uma vez. Durante o período, a Teledyne fez o spin-off das suas seguradoras. Para Singleton, aquela era uma maneira de destravar valor das subsidiárias, dar opções ao acionista e reduzir a complexidade do conglomerado facilitando uma sucessão. Assim como foi com a recompra de ações, Singleton foi pioneiro no spin-off.

Com a questão do spin-off resolvida, Singleton se aposentou em 1991 aos 74 anos. Durante o período em que esteve a frente da Teledyne – quase três décadas - Singleton entregou mais de 20% CAGR. Para efeito de comparação, o S&P500 retornou 8% no mesmo período. Se você entregasse 1 dólar pra ele em 1963, você receberia de volta $181 em 1990. Nem o tão reverenciado Jack Welch chegou próximo disso estando à frente da G&E.


Depois de se aposentar, Singleton voltou para o Texas para se dedicar a sua antiga paixão de criação de gado. Comprou mais de um milhão de acres ao longo de Novo México, Arizona e Califórnia, se tornando um dos maiores proprietários de terra dos Estados Unidos.

Henry Singleton veio a falecer em 1999, aos 83 anos, vitima de câncer cerebral. Após sua aposentadoria e falecimento, a Teledyne passou a ser alvo de ofertas hostis e, para se proteger, acabou se fundindo com a empresa Allegheny Ludlum. Atualmente algumas partes da Teledyne existem como empresas independentes enquanto outras fazem parte de empresas maiores.

É difícil encontrar discursos e frases de Henry Singleton. Sujeito discreto, ignorava não só Wall Street como também a imprensa. Suas aparições e entrevistas eram tão poucas que boa parte das citações conhecidas de Singleton já estão nesse texto. Uma, no entanto, ainda merece ser transcrita:

“Meu único plano é continuar vindo para o trabalho todo dia. Eu gosto de remar o barco dia-a-dia ao invés de planejar o futuro com muita antecedência. Eu sei que muitas pessoas tem planos fortes e muito definidos que deram certo em todo tipo de coisa, mas nós estamos sujeitos a um tremendo número de influências externas e a grande maioria delas não pode ser prevista. Então a minha idéia é de me manter flexível.”, Singleton

Eu gosto dessa frase porque é um reconhecimento de Singleton para a impossibilidade de grandes previsões e para a importância da opcionalidade. Se mantendo flexível, Singleton podia aproveitar melhor das circunstâncias a medida que elas fossem mudando.

Singleton definitivamente não era um sujeito comum. Foi bem sucedido em tudo o que fez e sempre mantendo sua independência de pensamento. Acho fantástico ver como ao longo do tempo muitas das suas até então controversas posições se tornaram referência. Inclusive quando pensamos naquele que é o maior investidor de todos os tempos, Warren Buffett. Repare nesse trecho do excelente livro “Outsiders”:




O post ficou um pouco grande mas na verdade é pequeno perto do que Henry Singleton merece. Embora ele não fosse se incomodar de ser esquecido porque, afinal, ele era Henry Singleton. 

Apenas um tal de Henry Singleton, sem PhD no final. Henry Singleton, um dos maiores alocadores de capital da história.

Stay cool,
Don Black


LEIAM:



Tuesday, August 20, 2019

O Modelo SaaS - p.4

Esse é o quarto post da sequência sobre o Modelo SaaS. Nos posts anteriores, falamos sobre a diferença fundamental de um modelo SaaS para um modelo de negócios tradicional, custo de aquisição de clientes (CAC), taxa de retenção (retention rate) e taxa de abandono (churn rate).

Nesse quarto post vamos falar do tempo de vida de um cliente (customer lifetime), da receita mensal recorrente (MRR), da receita média de um cliente (ARPU) e do valor do tempo de vida do cliente (LTV).

3. CUSTOMER LIFETIME

Customer lifetime é o tempo de vida de um cliente. Ou seja, mostra por quanto tempo um cliente usa a plataforma. Sendo assim, é um número que depende do Churn Rate e é calculado da seguinte forma:


Repare que o customer lifetime é uma função do customer churn rate e, portanto, o período (mensal ou anual) também será o mesmo. Por exemplo:

1) Customer churn rate mensal = 3%

Customer lifetime = 1/0.03 = 33 meses

Então um usuário usa a plataforma por, em média, 33 meses.

2) Customer churn rate anual = 20%

Customer lifetime = 1/0.2 = 5 anos

Então um usuário usa a plataforma por, em média, 5 anos.


4. MONTHLY RECURRING REVENUE (MRR)

O MRR é a receita recorrente mensal total, assim como ARR é a receita recorrente anual total. Qualquer base temporal pode ser usada contanto que haja consistência em todos os cálculos. (esse é um cuidado importante de se ter quando falamos em unit economics)

Mas o que é a receita recorrente? A receita recorrente é justamente o que separa o modelo SaaS do modelo tradicional e a essa altura todos nós já sabemos o que é: a receita da assinatura da plataforma.

A receita da assinatura é uma receita que vai ser paga pelo usuário todo mês (daí o recorrente) até que ele decida encerrar sua assinatura. É bem diferente da receita do modelo tradicional onde o lojista trabalha com vendas isoladas e não tem como fazer com que um cliente compre a mesma peça de roupa todo mês.

Algumas pessoas preferem retirar todas as receitas não-recorrentes do cálculo do MRR como, por exemplo, a taxa de adesão. Se você está analisando uma empresa, seja pública ou privada, pode ser desafiador conseguir todos esses valores com confiança. De forma geral, é possivel definir o MRR da seguinte maneira:

MRR = Soma das receitas recorrentes de todos os usuários


5. AVERAGE REVENUE PER USER (ARPU)

ARPU é quanto cada usuário gasta, em média, na plataforma. Significa então a receita recorrente média por usuário e costuma ser calculada na base mensal ou anual. As vezes o ARPU é chamado de ARPA (Average Revenue Per Account) ou ARPC (Average Revenue per Customer).


Devemos ter atenção para o "Total de usuários" na fórmula do ARPU. Se uma empresa oferece muito free-trial, ela vai atrair mais usuários e com isso aumentar sua base de usuários totais. Isso vai fazer com que o ARPU caia e, dependendo da capacidade da empresa em fidelizar os clientes quando o free-trial expirar, pode não refletir a realidade do negócio. Uma variante muito usada para lidar com esse problema é substituir o "Total de usuários" por "Total de usuários ativos". Nesse caso apenas os usuários pagantes vão fazer parte do cálculo do ARPU.

É instrutivo calcular o ARPU não só para todos os usuários da base como também para novos usuários adicionados no período. Quando o ARPU total é maior que o ARPU para novos usuários, isso pode significar que a empresa tem oportunidades de upselling e cross-selling.

Apesar de ser um instrumento útil para avaliar a estratégia de precificação que a empresa está usando, o ARPU deve ser visto com cautela. Como é o caso de muitas métricas que usam média, não é incomum ver o ARPU sendo distorcido por outliers. Ou seja, é preciso ter cuidado com casos onde poucos usuários são responsáveis por uma receita muito alta ou muito baixa, causando distorções no ARPU.


6. CUSTOMER LIFETIME VALUE (LTV)

LTV é o valor do tempo de vida de um cliente, uma estimativa do fluxo de caixa total não descontado que um usuário vai gerar ao longo da sua vida. Para dar uma perspectiva melhor sobre o valor de cada usuário, nós buscamos saber do lucro e não da receita dos usuários. Por isso usamos a margem bruta no cálculo do LTV. Intuitivamente é fácil de pensar que:

LTV = Total de meses que um usuário usa a plataforma x lucro mensal gerado pelo usuário

Ou seja,

LTV = Tempo de vida médio de um usuário x Lucro bruto médio por usuário

Formalizando essa idéia com as métricas que já aprendemos, nós temos:


A idéia do LTV não é nada nova e nos remete ao que Warren Buffet escreveu na sua carta de 1991:

“Em The Theory of Investment Value, escrito há mais de 50 anos atrás, John Burr Willliams estabeleceu a equação para valor, que nós resumimos aqui: O valor de qualquer ação, bond ou negócio hoje é determinado pela entrada e saída de dinheiro – descontado a uma taxa apropriada – que é esperado acontecer durante o resto da vida do ativo”

A diferença aqui é que, para entender o negócio no contexto de uma SaaS, relacionamos LTV com métricas como retenção e receitas recorrentes.

A melhor maneira para absorver o conceito de LTV é fazendo testes de sensibilidade onde vamos alterando algumas métricas baseado em diferentes simulações de cenários e vamos observando o que acontece com o LTV.

A hora de mostrar exemplos práticos, onde poderemos fazer esse tipo de análise, está chegando. Pretendo ainda abordar uma outra métrica importante, condensar o que já foi falado e, finalmente, entrar na parte mais prática.

Stay cool,
Don Black

MAIS SOBRE O TEMA:



* Texto inspirado em lições de David Skok e Tren Griffin

Thursday, August 15, 2019

O Modelo SaaS - p.3


Esse é o terceiro post da sequência sobre o Modelo SaaS e vai falar sobre retention rate e churn rate. O primeiro post da sequência está aqui e o segundo aqui e devem ser lidos antes para trazer contexto ao tema.

REVISITANDO O POST ANTERIOR

No post anterior eu deixei duas imagens para reflexão. São noções intuitivas sobre a dinâmica de um modelo de negócios SaaS. Um modelo saudável é aquele onde a monetização de um cliente é maior que o custo de aquisição do cliente. Mas não só isso. É preciso manter o cliente na plataforma, maximizando seu valor.

O post anterior foi dedicado a falar sobre o custo de aquisição. No post de hoje o foco vai ser o lado da retenção desse cliente. São portanto três os pontos chaves para o sucesso de um negócio SaaS:

  1. Aquisição dos clientes
  2. Retenção dos clientes
  3. Monetização dos clientes     

      Hoje vamos falar do segundo:

2. CHURN RATE & RETENTION RATE

I. Definição

Acredito que a melhor tradução para Churn Rate seja Taxa de Abandono. E como o nome sugere, Churn Rate é uma métrica para o percentual de clientes que encerram seus relacionamentos com a empresa em uma determinada janela de tempo. Se uma empresa começou com 1.000 clientes e perdeu 100 clientes ao longo do ano, então seu churn rate foi de 10%.




Muitos analistas e gestores preferem acompanhar essa informação a partir da taxa de retenção que, no caso, nada mais é do que o oposto da taxa de abandono. Retention rate é a métrica que mede o percentual de clientes que continuam seus relacionamentos com a empresa em uma determinada janela de tempo. No exemplo anterior, o retention rate é de 90%.


Retention Rate = 1 - Churn Rate

Colocando de forma bem simples, é como se o negócio fosse um balde furado, onde o trabalho do gestor é mante-lo cheio.




II. Importância


Medir o Churn Rate é importante porque reter clientes pode ser a diferença entre a vida e a morte de uma empresa. Para ajudar a te convencer da importância da retenção, segue a conclusão de um estudo da consultoria Bain & Company: aumentar a retenção de clientes em 5% melhora os lucros em 25% a 95%. Tudo bem que não é um intervalo tão específico mas ainda assim são números animadores.

A verdade é que não é difícil aceitar que pequenos pontos percentuais no churn rate fazem muita diferença. É um efeito que se acumula ao longo do tempo. Vamos apelar para a boa e velha representação visual para ajudar a entender:


O que o gráfico nos diz é o seguinte:

- Se a empresa tem um churn rate de 1% ao mês, após 36 meses ela ainda terá 70% dos clientes;

- Mas se a empresa tem um churn de 2% ao mês, após 36 meses ela terá apenas 49% dos clientes

Uma diferença de respeito.

III. O Churn Rate Ideal

Eu sei que não é o que alguém quer ouvir mas não existe um número mágico e absoluto para o churn rate. O que o empreendedor deve fazer é acompanhar o churn rate das empresas comparáveis e tentar sempre melhorar sua própria retenção respeitando a dinâmica das outras métricas.

No final das contas, um churn rate aceitável depende da indústria e do modelo de negócios. Sobre isso, o professor Jill Avery da Harvard Business School falou o seguinte:

“A verdade é que o que é aceitável varia muito dependendo do modelo de negócio e é muito dependente do quão rápida e eficiente a empresa é para atrair novos clientes e o quão lucrativos são os clientes no curto e no longo prazo. Alguns modelos de negócio prosperam apesar de terem um alto churn rate enquanto outros dependem de um baixo churn rate.”

De forma geral, quando uma empresa está começando, ter um churn rate um pouco alto não é o fim do mundo porque não é difícil substituir alguns poucos clientes que abandonaram a plataforma. Pense que se você acabou de começar sua empresa, possui 100 clientes mas teve um churn rate de 5% no mês, você terá que adquirir apenas 5 clientes novos. É administrável.

Mas a medida que a base de clientes fica grande, o churn rate começa a fazer muita diferença. Assim como uma árvore não cresce até o infinito, não é possível adquirir milhares de clientes infinitamente. Quando a base de clientes é grande e próxima do equilíbrio, um churn rate alto fica difícil de reverter porque é difícil adquirir muitos clientes novos, principalmente depois que o seu produto/serviço já não é nenhuma novidade. E no caso você precisa de muitos clientes novos apenas para repor todos os que abandonaram.

Manter um churn rate baixo não é fácil e compensar um churn rate alto também não é. Colocando em números, se o objetivo da sua empresa é um churn rate de 7% ao ano, isso significa dizer que ela deve ter um churn rate mensal de aproximadamente 0.5%. Em bom português, ela perde apenas 1 a cada 200 clientes por mês. Não é um número fácil de alcançar em um ambiente de negócios competitivo onde a concorrência passa o dia pensando em formas de roubar seu cliente.

IV. Como lidar com o Churn Rate

Normalmente o churn rate é maior onde os clientes são indivíduos e não empresas. O custo para se trocar de plataforma em uma empresa é grande porque afeta muitas pessoas. Além disso, os indivíduos tem mais incentivos para acabar com custos que os afetam pessoalmente do que com custos que afetam as empresas para os quais eles trabalham (ainda que os donos da empresa sejam eles mesmos). Então é de se esperar que se você oferece um serviço para pessoas físicas, você vai ter uma taxa de retenção menor do que se você oferece um serviço para empresas. Por outro lado, seu CAC certamente será menor. A magia dos unit economics é que eles são interdependentes.

Um fato óbvio e não menos verdadeiro é que o grande motivo por trás de um alto churn rate são clientes insatisfeitos com o que está sendo oferecido. É por isso que empresas famosas por terem uma alta retenção - como Costco e Amazon (Prime) - são obcecados na satisfação do cliente. Jeff Bezos entende essa dinâmica da seguinte forma:

“A balança do poder está pendendo na direção dos consumidores e para longe das empresas. O indivíduo está empoderado. A maneira certa de responder à isso se você é uma empresa é colocar uma grande quantidade da sua energia, atenção e dinheiro em construir um excelente produto ou serviço e colocar uma quantidade menor em propaganda. Se eu construo um grande produto ou serviço, meus clientes vão falar uns com os outros. No mundo antigo, você dedicava 30% do seu tempo em construir um grande serviço e 70% em propaganda. No mundo moderno isso inverteu.”

Satisfazer seus clientes é importante não só para aumentar a retenção mas também para aumentar a monetização. A medida que uma empresa aumenta as receitas de clientes existentes, ela consegue alcançar o que se chama de Churn Rate Negativo. O Churn Rate Negativo acontece quando:

Expansão da Receita dos Clientes Existentes > Receita Perdida dos Clientes que Abandonaram

O Churn Rate Negativo tira o foco do número de clientes e coloca o foco na receita gerada. Existem basicamente duas formas de se alcançar um Churn Rate Negativo:

1. Estratégia de precificação por variáveis onde o cliente passa a pagar mais a medida que aumenta o uso do produto. É uma estratégia usada por companhias de água, por exemplo. O preço do m3 de água que o consumidor paga é maior quando ele consome 500m3 no mês do que quando ele consome 50m3.

2. Upselling e cross-selling


IV. Considerações finais

Até agora falamos um pouco de CAC e de Churn Rate. Eu queria ter falado mais sobre outras métricas nesse post mas sinto que o texto ficaria longo demais e se tem uma coisa que quero evitar no blog são textos longos.

Além do simples conceito de CAC e Churn, eu peço que você comece a pensar na interdependência das métricas. Situações como:

1. Quero aumentar minha retenção e, pra isso, vou exigir um contrato mínimo de 5 anos do meu cliente. Assim a retenção vai ser maior ano que vem porque todos os clientes estarão obrigados sob pena de multa a ficar comigo por 5 anos. Ok, mas qual será o CAC desse cliente? Vai ser barato convencer um cliente a assinar um contrato de 5 anos? Será que vale a pena um CAC alto para aumentar essa retenção?

2. Quero alcançar um grande crescimento o mais rápido possível. Pra isso, vou gastar bastante dinheiro com marketing. Ok, mas que tipo de cliente você vai atrair com isso? Você vai atrair só clientes dentro do seu público alvo? Se você consegue atrair muito cliente de todo tipo, seu churn rate vai ser alto ou baixo? Será que vale a pena um marketing tão agressivo e caro para atrair qualquer tipo de cliente e, no final, ter um churn alto?

3. Quero melhorar minha retenção deixando meus clientes felizes. Para isso vou investir pesado em atendimento ao cliente. Ok, mas como isso impacta seus custos? Será que a maior retenção compensa esses gastos? Será que então você vai precisar aumentar um pouco o preço do seu produto para cobrir esses gastos extras? Mas se você aumentar, será que a retenção não vai ficar pior ainda no final?

Enfim, esses são pontos para se pensar. Os unit economics não são métricas independentes que podem ser todas maximizadas ao mesmo tempo. O que acaba acontecendo na vida real é que quando mexemos de um lado acabamos afetando o outro. O desafio do empreendedor é saber qual mix vai maximizar seu retorno financeiro.

Prometo que o próximo post vai ser sobre o lifetime value. Prometo também que levará menos tempo do que esse levou. Don Black promete, Don Black faz.

 

Stay cool,
Don Black


MAIS SOBRE O TEMA:




* Texto inspirado/com trechos de lições de David Skok e Tren Griffin

Thursday, August 1, 2019

Peter Lynch 1994 Lecture



Esse vídeo que posto hoje é um discurso seguido de perguntas e respostas que Peter Lynch participou em 1994. O vídeo merece ser visto por duas razões:

1) É o Peter Lynch! E acredito que seja uma das maiores lectures documentadas do Peter Lynch.

2) Ele fala sobre alguns dos seus maiores princípios. Além disso ele fala de um jeito leve e bem-humorado. 

A parte em que o Peter Lynch começa a falar é lá pelo minuto 9. Então não perca seu tempo com o apresentador do início e avance logo o vídeo.

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Update: 

Fiz um breve resumo sobre esse vídeo em uma thread no meu twitter @RabiscoDoDon e achei interessante compartilhar aqui no blog com vocês:

Lembrando que Peter Lynch esteve à frente da Fidelity's Magellan Fund de 1977 até 1990 e entregou um retorno médio anual de 29%. Em outras palavras, você entregava 1 tostão pra ele em 1977 e em 1990 ele te devolvia 27 tostões. Not bad.

1. A presença de instituições é boa para os pequenos investidores porque as grandes instituições empurram as ações para highs e lows exagerados, criando oportunidades.

2. “Ações não são bilhetes de loteria. Existe uma empresa por trás de toda ação.”

3. O mais importante de tudo é saber o que você tem. Se você não é capaz de explicar pra uma criança porquê você tem uma determinada ação, então você não deveria ter.

4. Ninguém consegue prever os rumos do mercado e nem da economia. Tentar fazer isso é perda de tempo.

5. Só o que você precisa saber é que o mercado com certeza vai cair, vai cair muito e vai cair com alguma frequência. E quando isso acontecer será ótimo porque se existia uma ação que você gostava antes, ela vai ficar mais barata.

6. Você pode tirar vantagem de um mercado volátil se você entende o que você tem.

7. Tenha paciência. Você tem bastante tempo e não precisa sair desesperado para comprar uma ação. Use seu tempo para identificar com calma as grandes empresas.

8. Use seu diferencial. Olhe para as empresas que estão na indústria que você já conhece e participa. Se você é uma enfermeira, não precisa comprar uma empresa de petróleo quando existem oportunidades na área da saúde, em empresas que você é familiarizada.

9. Você só precisa de poucas ações durante sua vida e você pode encontra-las no seu próprio ramo de atuação

10. É muito difícil quebrar se você não tem nenhuma dívida

11. Evite long shots. Ou seja, evite situações onde as chances de sucesso são muito remotas

12. Você não pode ficar muito apegado às ações. Elas não são seus netos! Você tem que entender a ação como uma empresa, e se os fundamentos deteriorarem você tem que se livrar dela.

13. Não gasta nenhum tempo pensando no que acontece no Congresso

14. Sempre vai ter algo pra se preocupar. Alguma depressão, recessão, guerra... Esqueça tudo isso e compre boas empresas que você vai se sair bem.

15. “O principal órgão do seu corpo para investir é o estômago e não o cérebro.”



Stay cool,
Don Black