Hora de escrever sobre alguma empresa brasileira. Já há
muito tempo não o faço, o que para mim é um desperdício. Como os leitores daqui
são versados no mercado brasileiro acabo aprendendo muito com os feedbacks de
vocês em postagens como essa de hoje.
Então vamos lá. Vou aproveitar o embalo do recente post da
Hertz e conhecer a Movida. Mas que o leitor não se apavore com essa conexão.
Movida e Hertz são empresas de diferentes operações e inseridas em diferentes
contextos. Comparações simplistas devem ser sempre evitadas. Investir é um
exercício de evitar complicações sem cair em simplificações exageradas. Esse é
o equilíbrio que o investidor deve buscar.
"Everything should be made as simple as possible, but not simpler", Einstein
A MOVIDA
A INDÚSTRIA
O mercado para aluguel de veículos no Brasil tem tido um bom
crescimento de dois dígitos há mais de dez anos e mesmo assim a frota das
locadoras corresponde a apenas 2% dos carros do país e apenas 3% dos motoristas brasileiros já alugaram um carro.
A expectativa é que esse crescimento continue a medida que
consumidores passem a ver os carros mais como um serviço e menos como bem. É o car-as-a-service! Os
incentivos para isso existem. Alto custo de aquisição de um bem que se deprecia
rápido, trabalho com emplacamento, vistoria, seguro e afins, custo de manutenção, etc. Tudo isso, aliado às novas
alternativas de mobilidade urbana, contribuem para que as pessoas comprem cada
vez menos carros.
Uma dessas alternativas de mobilidade foi exatamente o Uber.
O que poderia ser um concorrente virou um aliado. Tábua de salvação para uma
massa de mais de 10 milhões de desempregados, o Uber gerou uma demanda adicional para
as locadoras já que 25% dos seus motoristas alugam os carros.
Então ao que tudo indica o mercado para as locadoras é
saudável. Isso é uma grande coisa. Tocar uma empresa com os ventos da indústria a favor é uma benção.
A Movida atua em três frentes:
RAC: o bom e velho Rent-a-car, aluguel de veículo tanto para
pessoas físicas quanto jurídicas. O RAC vem em vários formatos e parece que a
Movida faz um esforço no sentido de oferecer um bom leque de opções para os
clientes. O aluguel pode ser diário, mensal e até anual. Tem o produto do carro
por assinatura (mensal flex) e aqui vai também o aluguel de carro para
motoristas de aplicativo, com atendimento dedicado e condições específicas de pagamento.
GTF: é a gestão de frota. São contratos longos - acima de um
ano - para aluguel de veículos para clientes corporativos. Nela a Movida trabalha com o cliente para saber suas necessidades
em relação ao tamanho da frota, geografia, padronização e personalização dos
veículos, e por aí vai. Esse trabalho feito sob medida pode levar meses até chegar na assinatura final do contrato. Dada a personalização, é como se fosse um mix de consultoria com locação de
veículos. Uma vez tudo acertado o contrato é firmado e só então a Movida
adquire a frota.
Seminovos: como o nome sugere é quando os carros usados na
locação vão ser vendidos. É uma área chave para uma locadora de carros porque é
por onde escoa o grande ativo imobilizado da companhia e o que permite a
necessária renovação da frota. A Movida sabe disso e portanto andou
concentrando esforços no reposicionamento da sua marca Seminovos Movida.
Esses segmentos não podem ser tratados com independência. O objetivo da empresa deve ser o de fazer um trabalho harmonioso entre os três segmentos de maneira a maximizar o valor total criado para a companhia.
Imagine que o GTF, buscando maximizar apenas seu retorno, compre um mix diferente do mix utilizado no RAC. Nesse caso a empresa perde poder de compra junto às montadoras, prejudicando seu resultado total. Outro exemplo seria a compra de uma frota com baixa capacidade de revenda. Exemplos que mostram como os segmentos devem ser vistos como parte de uma grande engrenagem e precisam trabalhar juntos.
HISTÓRICO OPERACIONAL
RAC
O foco da Movida é o RAC para pessoas físicas e a estrutura,
tanto física quanto digital, é desenvolvida pensando nisso. Aliás, pessoa
física é foco da Movida não só no RAC como na empresa como um todo. Lojas de
bairro, aprovação de financiamento online, pioneirismo no Movida Flex... São
muitas as iniciativas com a pessoa física em mente, um segmento de maior margem
e central no conceito do car as a service.
O RAC seguiu uma estratégia de ampliação de presença seguida
de melhoria operacional. Isso é boa notícia, longe da tentação do crescimento a
qualquer custo. Enquanto a base da frota total e pontos de atendimento foi se
estabilizando – embora ainda com um crescimento razoável – a utilização da
frota melhorou muito. É claro que a evolução da taxa de ocupação poderia vir
por destruição de valor, por aluguéis a preços muito baixos e tudo mais. Se for
o caso vamos pegar uma degradação de margem mais na frente quando formos olhar
os resultados financeiros. Mas até aqui não há o que reclamar.
No que se refere a eficiência acho importante olhar a razão da frota operacional por frota total. Ela dá uma noção da capacidade de giro da frota
e sua utilização. Não faz sentido observar apenas topline e ver crescimento
exponencial do número de veículos totais se cada vez uma maior proporção dessa
frota fica parada em manutenção. É dinheiro pela janela. E aqui a Movida vem
fazendo um bom trabalho.
GTF
A gestão de frotas é um segmento diferente. Aqui os
contratos são feitos sob medida para os clientes antes que qualquer frota seja
adquirida. Se o contrato não é renovado os carros vão para venda. Sem maiores preocupações
com taxa de ocupação.
A Movida concentra seu GTF em contratos com pequenas e médias empresas, evitando a forte competição que os grandes contratos atraem. Fazendo isso a Movida participa de contratos com melhores margens e mantém uma base de clientes diluida.
O crescimento da frota sinaliza o avanço do segmento dentro
da empresa. É claro que a maior contribuição de vendas vai vir sempre dos
Seminovos já que lá é fluxo de saída do ativo imobilizado. Mas a contribuição
de retorno do GTF é a melhor da companhia. Margens melhores e crescimento de
frota com alta utilização.
Existem vantagens indiretas no crescimento do GTF. É um
segmento sem os mesmos problemas de roubo, sazonalidade e PDD que o RAC. Uma
receita mais estável de longo prazo que traz melhorias adicionais de custo e
eficiência quando o perfil da frota é alinhado com o perfil da frota RAC.
Seminovos
Seminovos é um segmento de apoio de uma locadora de carro. E crucial. Em condições normais é onde está uma das minhas maiores
preocupações com uma locadora. Mas não no Brasil.
As grandes locadoras compram carros com muito desconto.
Justificável se considerarmos o volume de compra. Quando chega a hora de vender o
veículo e fechar o ciclo, elas não precisam recolher ICMS. Uma vantagem
tributária não compartilhada por montadoras e revendas multimarcas. Quando o
desconto da compra se junta a vantagem tributária, a locadora vê uma excelente margem do giro. Essa dinâmica é uma dádiva na vida de uma locadora.
Quando pegamos a Movida vemos que a participação dela no mercado
de usados nacional é mínima. Representa menos de 1% da venda anual de seminovos do
país. Junte tudo e a conclusão é simples: a venda de usados não traz grande
risco para a operação da Movida. Espaço pra melhorar? Sim, sempre dá para melhorar. Mas sem riscos em uma área tão crítica no business de uma locadora.
É engraçado, porque até onde vi no meu feed no twitter - sim, essa é a minha experiência com a empresa! - seminovos sempre foi uma grande preocupação do mercado. Eu não poderia me importar menos com essa segmento. Quer dizer, você está diante de uma gestão que já conseguiu atacar bem outros desafios chave da companhia como escalar, lidar com os problemas de PDD e roubo, e você coloca essa gestão diante de uma situação de venda onde a dinâmica é favorável para o modelo de negócios. Eu não sei por que queimar a cabeça aqui, sinceramente. Mas esse sou eu.
Reforçando essa minha percepção a Movida já falou que não tem
problema nenhum para se desfazer da sua frota. Idealmente a Movida busca vender
os carros no varejo. As margens são melhores e é onde está o posicionamento
da empresa. Varejo representa por volta de
50% das vendas. Mas se necessário for, a Movida simplesmente desova tudo no
atacado. Sem falta de demanda e sem necessidade de queimar a qualquer preço.
Bom assim.
COMPETIÇÃO
Eu não fiz o meu dever de casa e não olhei nenhuma das
concorrentes. Uma medida dispensável para quem rabisca um post mas
indispensável para quem investe seu suado dinheiro. Então se você está pensando
em comprar Movida não se de ao luxo de não conhecer a fundo as
concorrentes.
Passado o aviso vamos ao pouco que eu sei. As outras duas
grandes locadoras além da Movida são a Unidas e a Localiza. Juntas elas possuem
cerca de 50% do mercado, o que mostra espaço para consolidações. A tendência é
essa participação aumentar porque é uma indústria com claros benefícios de
escala. A consolidação pode vir por aquisições ou organicamente, uma vez que as gigantes tem estrutura de custo superior. No caso da Movida o crescimento deve ser orgânico.
Veja bem, ambiente competitivo vem em diferentes formas e dinâmicas.
No caso das locadoras brasileiras estamos falando de um mercado em expansão,
com diferentes perfis de clientes, ganhos de escala que inibem novos entrantes
e três grandes participantes. Nesse tipo de mercado não é comum vermos prática
predatória. Simplesmente não vale a pena para ninguém. Eu ficaria surpreso em
saber que as três gigantes andam em guerra de tarifa ou coisas do tipo.
O que costuma acontecer nesses casos é um comportamento racional. Comida na mesa de todo mundo. Então, por exemplo, se um benefício como o ICMS for suspenso eu não me surpreenderia de ver as três gigantes juntas repassando o custo para o cliente.
Então eu imagino que elas tenham posicionamentos, modelos
de negócios e foco em nichos diferentes, mas fiquem a vontade para me corrigir
se eu estiver errado. Se e enquanto essa dinâmica persistir eu espero ver um
comportamento racional de todas as três grandes empresas. E essa é uma dinâmica
que deve persistir enquanto o mercado acomodar o crescimento de todas elas.
GESTÃO E ESTRUTURA ACIONÁRIA
O CEO é um rapaz chamado Renato Franklin ex-executivo da
Vale e com rápida passagem pela Suzano. Formação em contabilidade e experiência
em suprimentos e financeiro. O outro rapaz que vi é Edmar Prado, responsável
por RI, administrativo e financeiro. Experiência prévia na Gol, Globo e Net.
Eu gostei do pouco que vi da dupla. Uma coisa comum em
executivos com essa formação é a maneira como enxergam um negócio, como
enxergam alocação de capital. Isso se manifesta nos constantes comentários
sobre busca focada em segmentos de melhor margem, preocupação com ROI e
crescimento sustentado.
Também fiquei agradado da comunicação da dupla em temas mais sensíveis que aconteceram ao longo da história deles na empresa. Temas como as taxas de roubo e fraude, mudanças do IFRS, pressão do público por resultados do seminovos e, o mais importante para mim, tratamento de depreciação.
Também fiquei agradado da comunicação da dupla em temas mais sensíveis que aconteceram ao longo da história deles na empresa. Temas como as taxas de roubo e fraude, mudanças do IFRS, pressão do público por resultados do seminovos e, o mais importante para mim, tratamento de depreciação.
Acho que a associação dessa dupla com a JSL, uma gigante
com braço em transportes e concessionárias, foi feliz. Falando em JSL, a
empresa detém 55% da Movida. Eu não sei muito da JSL mas pode ser um veiculo
alternativo para ter exposição na Movida. Para fazer isso é claro que tem que olhar a
JSL, seus outros negócios e níveis de alavancagem. Vai lá ver e me conta depois!
DÍVIDA
Como disse no post da Hertz, o fundamento de uma locadora é
simples. Você precisa comprar um carro, alugá-lo e depois vende-lo e comprar um
novo. Uma grande locadora é isso em escala. Seu gasto inicial é alto porque você está adquirindo
o ativo, sua receita futura vai ser uma fração desse ativo, e a venda é a desmobilização desse ativo. Por isso é tão idiota o argumento de que como Seminovos
representa maior parte da receita de uma locadora o benefício do ICMS deve ser
retirado. Enfim,
voltando a Movida:
O ciclo operacional da Movida é de mais ou menos um ano e a
empresa cresceu bem nos últimos três anos. Para crescer tem que comprar carro e
para comprar carro tem que gastar. É esperado que haja um aumento da dívida em
termos absolutos e/ou diluição. E houve! No entanto houve também uma melhora
significativa no perfil da dívida. O risco sacado, um passivo pré oneroso em épocas de queda de juros, caiu fora. A melhora operacional da companhia melhorou o acesso
ao mercado de capitais. No final das contas, a dívida está mais barata e
alongada. E considerando o ativo e os resultados operacionais da empresa, é também
um nível de alavancagem razoável.
HISTÓRICO FINANCEIRO
Até aqui a Movida vem fazendo um bom trabalho. Crescimento
no top e bottom line com evolução mesmo durante um período mais crítico do
país. As vantagens da escala vão ficando claras. Menor custo de dívida e maior
poder de barganha com as montadoras reduzem as linhas de custo. Avanço em segmentos
de melhor margem, mais dados levando a melhor capacidade de precificação e
entendimento do mix vão melhorando a linha de receita.
O fluxo de caixa aponta uma operação saudável e ascendente.
O peso no caixa total vem do crescimento que, como já disse, vem por diluição e
dívida. Tudo a nível administrável, nada a reclamar.
O olhar atento notou que eu não usei dados do primeiro
trimestre de 2020. E sendo um trimestre de coronavirus é de se imaginar que
muitos acreditarão que estou deixando o principal de fora. O principal, meus
amigos, é observar execuções ao longo do tempo. Eu não costumo olhar muito resultado
trimestral. Meu palpite pelo que observei da companhia é que vão buscar segurar
a rentabilidade através de um ajuste da sua estrutura (fechar lojas, renegociar
contratos, aumentar a idade média da frota, etc) e inevitavelmente perder no
topline. Acho que a empresa tem boa posição para passar por esse período. Capitalizada, dívida longa, pouca exposição a Uber, pouca exposição a aeroportos, agilidade de adaptação...
E foi assim por essa visão que construi minha estória para a
companhia, criei minhas premissas e fiz minha conta de padeiro por aqui. Uma
conta de padeiro que me deu um valor de mais ou menos 19 reais. A 13 reais, na minha
opinião é uma boa compra hoje e foi uma gritante pechincha no meio de março.
Bom para quem aproveitou. Quem sabe o futuro não reserva outra oportunidade assim?
Stay cool,
Don Black
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