Wednesday, October 23, 2019

Amazon for dummies


O nome AMAZON atrai! Chama atenção! Vende! É por isso que em recente entrevista do José Isaac Peres, fundador da Multiplan, o título da matéria era:

José Isaac Peres: ‘Amazon é gigante de papel, que lucra menos de 1% do que vale’

A entrevista é no máximo razoável e a parte da Amazon foi apenas um pequeno detalhe mas o jornalista fez questão de colocar essa fala em destaque. Tudo para despertar os sentimentos do público. Porque é isso que a Amazon faz, desperta sentimentos! É o bear do varejo nacional que vê a Amazon como o gigante que vai finalmente trazer o desenvolvimento para o consumidor brasileiro, destruindo todos os players locais. E é o bull do varejo nacional que regurgita o velho mantra - com até certo orgulho patriótico - de que “aqui no Brasil o buraco é mais embaixo.”

Para surpresa de ninguém, José Isaac pareceu estar mais com a turma do bull do varejo nacional quando disse na entrevista que “A Amazon é um gigante de papel. É uma empresa que vale US$ 1 trilhão e tem um lucro inferior a 1% do capital. Isso vai até quando?”

José Isaac Peres está atrasado quando se trata de Amazon. O questionamento dele data dos anos 90, quando a Amazon ainda era só Amazon.com. Mais de 20 anos depois e nem o maior Amazon-bear se apega mais nisso. É discurso ultrapassado. Apenas um grupo de pessoas ainda fala disso, aqueles que não conhecem a Amazon.


A AMAZON DO MISSIONÁRIO JEFF BEZOS 

A Amazon é antes de tudo uma sobrevivente. Nasceu em 1994 e se tornou pública em 1997, pouco antes da bolha ponto-com. Na época a Amazon se chamava Amazon.com, o que adiciona um pouco mais de drama ao enredo. Mas no final das contas a Amazon viu a morte de perto e sobreviveu.

De lá para cá a empresa passou por vários altos e baixos que hoje são imperceptíveis pontos distantes do gráfico de cotação. E o que sempre esteve presente durante todo o momento foi a visão de Bezos para o negócio e sua capacidade de execução. Bezos entregou o que prometeu. E o que é isso exatamente? São os pilares que sustentam o modelo de negócios da Amazon:

1. Fluxo de caixa

“Margens percentuais não são uma das coisas que procuramos otimizar. É o valor absoluto do fluxo de caixa livre em dólar por ação que você quer maximizar e se nós podemos fazer isso reduzindo as margens, nós faremos. Então se você pode gerar fluxo de caixa livre, isso é uma coisa que os investidores podem gastar. Os investidores não podem gastar margens percentuais.”, Jeff Bezos

2. Market-share

“Liderança de mercado pode se traduzir diretamente em maiores receitas, maior lucratividade, maior velocidade de capital, e correspondentemente, melhores retornos sobre o capital investido.”, Jeff Bezos

3. Paciência

“Se tudo o que você faz precisa funcionar em um horizonte de três anos, você está competindo contra muita gente. Mas se você está disposto a investir em um horizonte de sete anos, você agora está competindo contra apenas uma fração dessas pessoas porque são poucas as empresas dispostas a fazer isso. Por apenas prolongar seu horizonte de tempo você pode se engajar em empreitadas que de outra forma você jamais poderia perseguir. Na Amazon nós gostamos de coisas que funcionam de cinco a sete anos. Nós estamos dispostos a plantar a semente e deixar crescer. E nós somos muito teimosos.”, Jeff Bezos

4. Obsessão com consumidor

“A principal coisa que nos fez ter sucesso é o foco compulsivo-obsessivo com o cliente ao invés de ter obsessão com o competidor.”, Jeff Bezos

5. Experimentação

"Para inventar você tem que experimentar, e se você sabe de antemão que vai dar certo, então não é experimentação. Fracasso e invenção são gêmeos inseparáveis.", Jeff Bezos

6. Agressividade

“A sua margem é a minha oportunidade.”, Jeff Bezos

Foi em cima disso que a Amazon se construiu e é em cima disso que a Amazon continua sua caminhada. O investidor que buscou lucros no demonstrativo de resultados da Amazon viveu anos de frustração. O primeiro lucro da Amazon aconteceu no último trimestre de 2001 e mesmo assim não se manteve ao longo do tempo. Em compensação o fluxo de caixa operacional é positivo desde 2002.

É essa concepção de negócios com desdém para a lucratividade que intriga tanta gente. José Isaac Peres entre eles. Mas ninguém pode culpar Bezos. Ele já havia alertado para suas prioridades na sua primeira carta aos acionistas, traduzida e publicada aqui. E lucratividade nunca foi uma dessas prioridades. Pelo contrário, Bezos faz questão de não ter alta lucratividade. Esse é o ponto-chave, então vamos repetir:

Bezos faz questão de ter margens baixas e pouco lucro. Faz questão! Bezos reinveste todo lucro da Amazon para (1) desenvolvimento de tecnologia e novas frentes de negócios; (2) aumentar eficiência para o consumidor e (3) diminuir preço para o consumidor. Com geração de caixa saudável, a Amazon fica livre para repassar todo benefício para o consumidor e com isso ganhar escala.

É importante entender que as baixas margens e lucros da Amazon são propositais. Não é resultado de busca por sobrevivência e nem de má gestão. É um desenho intencional da Amazon para pressionar os concorrentes e ganhar escala. Afinal, como Bezos disse, “sua margem é minha oportunidade”.

A execução consistente ao longo dos anos deu a Bezos uma grande vantagem: o benefício da dúvida. A Amazon tem uma forte base de investidores que entende o modelo de negócios e está disposta a confiar na visão de Bezos independente de lucros.  Poucas empresas podem jogar o mesmo jogo. O acesso a capital, foco em longo prazo e desdém por margens transformaram a Amazon em muito mais do que uma simples varejista virtual. A Amazon virou uma máquina de disrupção. Uma máquina de disrupção que fatura 29 milhões de dólares por hora!

A AMAZON DE HOJE

A Amazon está dividida em 6 segmentos operacionais:

  1. Venda online: venda direta online (1P) e receitas do conteúdo digital
  2. Loja física: vendas onde o cliente retira o produto fisicamente na loja. É o caso do Whole Foods.
  3. Serviços de vendas de terceiros (3P): comissões e taxas de armazenagem e envio de produtos de terceiros que são comercializados via marketplace
  4. Serviços de assinatura: taxas anuais e mensais relacionadas a audiobook, video digital, e-book, música digital e, acima de tudo, o Prime. Não está incluido aqui o AWS, que merece um segmento próprio
  5. Amazon Web Services (AWS): serviço de computação em nuvem da Amazon
  6. Outros: como todo campo “Outros”, significa tudo que não está nos anteriores. No entanto existe um segmento que está aqui e merece destaque: propaganda.


A distribuição de receita por segmentos é a seguinte:


E aqui está como foi essa evolução na distribuição nos últimos anos:


A diversificação vem acontecendo aos poucos mas o que chama atenção é a predominância da venda online, que representa mais de 50% da receita da Amazon. Se existe um segmento que retrata fielmente a visão Amazon de margem baixa e liderança de mercado esse segmento é o da venda online. E o segredo para manter essa roda girando é o ciclo de conversão de caixa. Em outras palavras, a Amazon recebe o pagamentos dos seus clientes muito antes de ter que pagar seus fornecedores.

Durante esse processo de venda, recebimento e pagamento, a Amazon mantém um float de quase 20 dias. O ciclo de conversão de caixa do Walmart é de menos de 3 dias e o do Costco é por volta de 4 dias. Essa liquidez imediata ajudou a Amazon desde seus primeiros dias permitindo um reinvestimento contínuo em crescimento. Exatamente como Bezos vislumbrou desde o início.

UM POUCO SOBRE AWS

Quando passamos para rentabilidade nós temos uma visão um pouco diferente da Amazon. Aqui a empresa não divulga por segmentos operacionais mas mesmo assim é o suficiente para mostrar uma coisa importante: a força da AWS.


A AWS é talvez o experimento de maior sucesso da Amazon. Começou em 2000 a partir de uma necessidade interna da empresa. Com paciência, levou 13 anos para se tornar um negócio de 2 bilhões de dólares. E depois levou apenas cinco anos para explodir, saindo de 2 bilhões de dólares para 26 bilhões de dólares.




Colocando tudo junto vemos que a AWS representa 10% das vendas e 60% do EBIT da Amazon (foi 105% em 2017!). Uma maneira de pensar é que o AWS financia a empresa mas isso seria ignorar todo o modelo de negócio já falado da Amazon e sua impressionante geração de caixa. E isso nós deixamos para o José Isaac Peres.

UM POUCO SOBRE 3P

Antes de começarmos tenha em mente que Gross Merchandise Volume (GMV) nada mais é do que o valor em dólar das mercadorias vendidas. Nome complicado e simples definição, como boa parte dos termos técnicos.

No caso da Amazon a venda direta online saiu de $1.6 bilhão em 1999 para $117 bilhões em 2018. Um CAGR de 25% ao longo de quase 20 anos. Para efeito de comparação, o eBay, outro gigante da venda online dos Estados Unidos, teve um CAGR no mesmo período de 20%.

Achou bom? Então veja isso:

Quando falamos em venda online de produtos de terceiros que usam o marketplace da Amazon o número salta de $0.1 bilhão em 1999 para $160 bilhões em 2018. Um CAGR de 52% ! O take-rate da Amazon para vendas de terceiros é de pouco mais de 26%.

O resultado disso é que a Amazon representa hoje quase 50% de todo o e-commerce dos Estados Unidos.

UM POUCO SOBRE PRIME

Há muitos anos sou assinante do Amazon Prime e nunca cogitei cancelar. O que minha família economizou em taxas de entrega ao longo dos anos pagou o Prime em muitas vezes. E assim é para muitas das pessoas que conheço, o que sempre me fez pensar em como a precificação do Prime era um potencial desperdiçado.

A essa altura nós sabemos o por quê. O objetivo da Amazon não é explodir sua lucratividade com assinaturas do Prime. O que a Amazon quer é um cliente que tenha compras mais recorrentes na plataforma, que tenha uma taxa de conversão maior para novos produtos e que tenha um custo de aquisição menor para novas invenções. 

E é exatamente isso que os clientes Amazon Prime oferecem em relação aos clientes comuns. O cliente Amazon Prime compra em média 40% a mais por ano na Amazon do que o cliente comum. Hoje já são mais de 100 milhões de assinantes Amazon Prime nos Estados Unidos; mais da metade dos lares americanos possuem Amazon Prime. É um exército fidelizado.

UM POUQUINHO SÓ SOBRE PROPAGANDA

Eu não vou me alongar muito por aqui mas queria chamar atenção para um segmento que acredito que um dia vai ter sua própria linha no balanço da Amazon: propaganda.

A indústria da propaganda é difícil até mesmo para a Amazon. Isso por que nela existem outros grandes conquistadores, Google e Facebook. E o segmento de propaganda da Amazon ainda é muito pequeno em relação ao que esses dois geram. Mas está crescendo!


Pesquisa recente mostrou que quase metade (46.7%) dos buscas online por novos produtos começam na Amazon. Em compensação, “apenas” 34.6% dos entrevistados começaram pelo Google.

Assim como é com o Prime eu acho que a Amazon não vai espremer os usuários para extrair o máximo possível de receitas com propaganda. Fazer isso comprometeria a experiência e levaria a um descontentamento crescente. Em outras palavras, afastaria consumidores. E isso é a última coisa que a Amazon quer. Mas a medida que mais e mais pessoas usam a Amazon como fonte de pesquisa eu espero algum aumento nessa linha de receita.

O CICLO VIRTUOSO DA AMAZON

Em 2001 Jeff Bezos rascunhou seu modelo de negócios em um guardanapo. O rascunho era o seguinte:



Para Bezos tudo começa em dar ao cliente uma excelente experiência (repassar o valor para o cliente sem pensar em margens). Uma grande experiência vai atrair mais clientes. Com mais clientes na plataforma, mais vendedores (3P) vão se juntar. Os novos vendedores vão ampliar a seleção de produtos e competir em preço, reduzindo o preço dos produtos para o consumidor final. Com isso a experiência do cliente fica ainda melhor. Simples assim.

Com os recursos gerados nesse ciclo virtuoso a Amazon seguiu seu paciente processo de experimentação. O resultado está nos novos negócios criados desde que Bezos fez esse rascunho no guardanapo. Mas os negócios vão obedecendo a mesma dinâmica, buscando gerar valor para o consumidor e espremendo os concorrentes.

Sob pena de me tornar repetitivo, os pilares do modelo de negócios da Amazon transformaram a empresa de Bezos em uma máquina de disrupção. Não importa o quão estabelecida ou grande seja a concorrente, quando a Amazon aparece é hora de ligar o alerta. E a Amazon já apareceu no Brasil. E agora?

A AMAZON NO BRASIL

Antes de começar vou a alguns fatos:

1. Não existe lei que impeça empresa gringa de prosperar no Brasil. Isso é fantasia e deve ser esquecido. O que deve ser observado é a execução da empresa, seja ela estrangeira ou não. É possível argumentar que empresas gringas executam mal no Brasil mas isso não basta como regra absoluta para desconsiderar todas elas.

2. O Brasil é uma experimentação para a Amazon. E sequer é a principal. A principal experimentação da Amazon no mercado internacional atende pelo nome de Índia. E isso é um fator que ajuda os players brasileiros.

3. Evolução no varejo não acontece da noite para o dia. Vai levar tempo até a Amazon ter sucesso no mercado brasileiro. E talvez não tenha nunca.

Dito isto, vamos prosseguir.

A Amazon começou a vender e-book no Brasil em 2012 e dois anos depois passou a vender livro impresso. É irônico que tenham começado por livro eletrônico e só depois tenham passado para o tão tradicional livro físico. Mas faz sentido. O e-book é uma oportunidade fácil de atacar em um momento em que a empresa começa a ter contato com um novo mercado.

O avanço para livros tradicionais representa muito mais do que parece porque significa a entrada no varejo físico. É a Amazon se aprofundando nos desafios logístico e tributário. A Amazon não começa por livros porque acha que o Brasil é um país de leitores inveterados. A Amazon começa com livro no Brasil pela mesma razão que começou com livros nos Estados Unidos: é um produto padronizado, não-perecível, que possui algumas complexidades (diferentes números de títulos, por exemplo) ao mesmo tempo que é um dos mais fáceis desafios do varejo físico. A Amazon quer apenas aprender.

Em 2017 a Amazon expandiu para o marketplace a fim de testar a receptividade e preferência dos consumidores brasileiros. A partir daí a Amazon percebeu a necessidade de desenvolver um centro de distribuição no interior de São Paulo antes de dar o passo seguinte. E o passo seguinte veio esse ano através da venda direta e do Amazon Prime.

O anúncio do Amazon Prime causou frisson. Lembra que eu comentei no início que a Amazon despertava sentimentos? Foi o que aconteceu. Varejistas brasileiras viram suas ações caírem, como se transformação varejista acontecesse por um anúncio. Com o tempo tudo foi se normalizando. Agora as varejistas brasileiras já devem estar acreditando que implodiram a Amazon por aqui. É a velha paixão de mercado que cria muito barulho e pouca sinalização.

Para o investidor racional o frisson causado pelo anúncio do Prime fez pouco sentido. A Amazon já era famosa nos Estados Unidos quando o Prime foi lançado em 2005. Seis anos depois e o Prime ainda significava apenas 4% dos usuários da Amazon. Se mesmo no berço da Amazon o Prime demorou até ganhar tração, por que acreditar que no Brasil seria diferente? Os fanáticos acreditam naquilo que eles querem acreditar a despeito dos fatos.

O avanço gradativo da Amazon no Brasil está alinhado com sua cultura de experimentação. Além das citadas logística e tributação, a Amazon tem um desafio adicional no Brasil: os pagamentos. A cultura brasileira de pagamento parcelado impacta a Amazon naquilo que é sua fundação, o fluxo de caixa. E ao que tudo indica a Amazon vai buscar o crescimento orgânico enquanto aprende.

Isso quer dizer que é improvável que a Amazon saia fazendo aquisições de grandes redes brasileiras, como é o sonho de muitos acionistas por aí. O que deve acontecer é a Amazon continuar pouco representativa por um tempo enquanto vai estudando o comportamento do consumidor brasileiro, expandindo seu catálogo e arredondando sua logística de entrega. E só então, caso julguem valer a pena, a Amazon vai começar a pressionar. 

Quando/se esse dia chegar vai ser fácil de saber. Como? Simples, nenhuma grande varejista vai ter nada perto de dois dígitos de margem.

Desculpem o texto longo.

Stay cool,
Don Black


2 comments:

  1. Excelente texto. Obrigado por compartilhar essas explicações!

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    1. Eu que agradeço sua mensagem. Seja bem vindo ao blog!

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