Wednesday, November 25, 2020

A grande força do invisível


Meu tio era um degenerado. Contanto que estivesse acordado, Tio Joseph estava ou fumando ou bebendo ou vadiando. Não raro fazia mais de um por vez. Mais do que um adepto, Tio Joseph era grande entusiasta dos seus hábitos e achava que não havia outra forma de um homem de verdade viver.

“Donzinho, você é o mais próximo que eu tenho de um filho. Não vá virar um desses maricas e arruinar nosso nome. Homem de verdade bebe, fuma e é mulherengo!”

Com um conceito de “homem de verdade” tão discutível não é de se surpreender que minha mãe desaprovasse minha proximidade com Tio Joseph. Para seu absoluto desalento, a verdade é que eu venerava o Tio Joseph. Aliás, exceto pela minha mãe, todo mundo o venerava. Se escrevo dele hoje é por que a morte recente do Sean Connery me fez relembrar o Tio Joseph. Esse era o patamar da classe do Tio Joseph, o Sean Connery dos anos 60.

Num dia qualquer o Tio Joseph foi me buscar na escola. Não que precisasse. Pode parecer entranho para a geração do transporte escolar mas naquela época era comum as crianças irem a pé para casa. Ainda assim eu gostava quando o Tio Joseph ia me buscar. A gente sempre passava no bar Simpatia e eu tomava um frapê de coco enquanto Tio Joseph bebia alguma coisa e jogava conversa fora com o seu Sica português. Tio Joseph estava sempre tricotando com alguém.

Acontece que quando foi nesse dia nós não fomos no Simpatia. Ao invés disso Tio Joseph me levou em uma alfaiataria onde o funcionário me mediu dos pés a cabeça. Não era o tipo de programa que eu apreciasse muito. Quando então Tio Joseph me deixou em casa, eu fui bem direto:

“Tio, hoje a tarde muito chata!”

“É assim mesmo Don, nem sempre dá pra ter o bom sem ter o ruim antes.”

“Sei, e cade o bom?”

“Você vai ver no fim de semana. Sua roupa já vai estar pronta até lá.”

“E por que não posso usar a roupa que eu tenho?”

“Porque ninguém há de levar um maltrapilho a sério.”

“Tio, eu sou uma criança!” - e como toda criança há de testemunhar, crianças não costumam ser levadas a sério pelos adultos, estejam elas de pijama ou de traje de gala

“Pois bem, uma criança maltrapilha”

Chegado o fim de semana e Tio Joseph apareceu na loja do papai. Era lá onde eu passava a maior parte do tempo quando não estava na escola.

“Tudo bem se o Don passar o dia comigo?”, perguntou Tio Joseph

Fiquei na expectativa de que papai se apiedasse, mas sem maiores esperanças já que ele apreciava minha ajuda no trabalho. Para minha surpresa ele não fez objeções:

“Pode ser. Onde é que vocês vão?”

“No Jockey”, respondeu meu tio

 Fiquei radiante com a resposta mas me pareceu à época que Tio Joseph teria feito melhor em mentir. Largar o trabalho para ir no Jockey? Vi tudo ir por água abaixo.

Acontece que para minha felicidade o papai não tinha a mesma resistência ao Tio Joseph que mamãe tinha (nem ao Tio Joseph e nem ao Jockey, diga-se). Acho que em parte porque era seu irmão, mas em parte porque todo mundo adorava o Tio Joseph mesmo. Tio Joseph era magnético pra burro.

Só o que papai disse foi:

“E ele vai vestido assim?”

Mas que diabos! Qual é o problema com minha roupa???

“Meu alfaiate está nos esperando. Ele se troca lá.”

“Tudo bem então” - disse papai. E para minha absoluta surpresa completou: - “Aqui garoto, toma isso e não conta pra sua mãe.”

Papai pegou um tanto de dinheiro que guardava no bolso da camisa e me deu alguns merréis.

E eu, um péssimo avaliador da natureza humana, vi como as vezes as pessoas nos surpreendem.

***

Eu devo que confessar o quão bem me senti ao vestir meu terno. Era como se eu fosse um cidadão de primeira classe, como o filho do presidente ou coisa parecida. Se por algum viés de confirmação ou não, achei mesmo que os adultos estavam a me levar mais a sério. É possível que estivessem mesmo, já que adultos são sempre muito sensíveis a aparências.

Uma vez no Jockey compreendi o problema com minha velha roupa. Nunca antes houvera visto tamanho número de gente tão bem apanhada. Tal é a força do relativo que àquela altura eu já nem me sentia mais tão importante assim com o meu terno.

Tio Joseph acenava e falava com deus e o mundo. Mais parecia político em campanha já que até bebê ele pegava no colo. Meu pai dizia que esse era o trabalho do Tio Joseph, falar com os outros. Minha mãe dizia que ele era um vagabundo com sorte. É engraçado como podemos construir versões tão diferentes de uma mesma realidade. Tudo o que importa é que a narrativa se encaixe naquilo que acreditamos.

O fato é que o Tio Joseph era abastado. Olhando assim de longe parecia mesmo que ele não fazia muita coisa. Eu por outro lado vivia ocupado. Entre escola e a loja do papai lá se ia 90% do meu tempo. Apesar disso eu não conseguia juntar muito dinheiro. Vá lá que eu ainda era muito jovem mas ainda assim me parecia um terrível equilíbrio entre esforço e recompensa.   

Não é de se admirar que eu visse no Tio Joseph um modelo de trabalho, ainda que não soubesse bem qual trabalho era esse.

***

Tio Joseph pareceu concentrar suas atenções em um sujeito de uma tremenda força de presença. Parecia mesmo o dono do mundo. Eu da minha parte não estava disposto a ficar parado por horas falando com o dono do mundo, fosse ele quem fosse. Então sob a benção do meu tio eu fui passear pelo clube. Tudo muito bonito e grandioso, eu estava impressionado.

Quando finalmente voltei Tio Joseph ainda estava no mesmo lugar e conversando com a mesma pessoa, o dono do mundo. Nem minha tia viveu tempos de tanta exclusividade assim. Então o dono do mundo virou pra mim e perguntou:

“E você garoto, que tal uma aposta no próximo páreo?”

“Sério?! Eu posso apostar?”, e olhei para o meu tio

“Sozinho você não poderia mas comigo tudo bem.”

E então ele me passou um papel com os páreos:

“Em quem você vai apostar?”, perguntei meio perdido

“Vou apostar no cavalo do Nélio” - respondeu e fez com a cabeça na direção do dono do mundo - “O nome do cavalo é Old Apollo.”

O papel com os páreos era complicado. Eu não entendia muita coisa. Quando finalmente me dei conta, vi que o Old Apollo não ia mudar muita a minha vida ainda que ganhasse.

“Não é melhor apostar em um que me dê mais dinheiro se ganhar?”

“Don, o problema de apostar contra os melhores é que os que ganham sempre arrumam um jeito de seguir ganhando. As vezes é melhor ganhar menos ao lado do melhor do que colocar suas esperanças em um pangaré.”

Não lembro se as palavras foram exatamente essas mas a mensagem foi. E Tio Joseph passou essa mensagem com muita propriedade, para felicidade do Sr. Nélio e minha absoluta confusão.

Até cinco minutos atrás eu achava que não poderia apostar e estava tranquilo com isso. De repente fiquei muito feliz ao saber que poderia apostar. A felicidade durou dez segundos e agora lá estava eu, consumido pela ansiedade por ter que escolher um cavalo e sem fazer idéia de como. Uma montanha russa de emoções.

Acontece que o Tio Joseph ia todo santo dia no Jockey, então achei que seria boa idéia seguir seus ensinamentos e apostei o dinheiro que papai me deu no Old Apollo.

A corrida durou uns 2 minutos e apostar no Old Apollo foi a melhor coisa que eu fiz, por aproximadamente 1 minuto e 50 segundos. Isso porque nos 10 segundos finais um cavalo escuro que passou a corrida toda na mediocridade do pelotão de trás achou que era boa idéia assumir a liderança. Eu acho que nunca vi um animal correr tanto. O infeliz parecia estar fugindo de um leão. Disparou, ganhou a prova e com isso levou meu dinheiro.

Levou um tempo até eu parar de ter raiva desse cavalo. Aliás, eu fiquei com muita raiva de todos que estavam torcendo por ele também. Até do Old Apollo eu estava com raiva, o que é muito interessante porque por 1 minuto e 50 segundos ele foi o centro das minhas atenções e o ser vivo que eu mais amei no mundo.

Outro problema é que eu ia ficar ali no Jockey por mais umas duas horas e como eu tinha perdido meu dinheiro, seriam duas longas horas. Me pareceu muito desagradável ficar no meio de tanta gente chique, em um ambiente com tantas apostas e emoções, e não ter nenhum tostão furado. Então eu surgi com uma idéia muito boa, que era a de ganhar a próxima aposta. A única questão era arrumar dinheiro para fazer isso:

“Tio, você pode me emprestar um dinheiro?”

“Pra que?”

“Pra eu apostar no próximo páreo.”

“Pois aposte com o dinheiro que seu pai te deu, oras.”

“Isso não vai dar.”

“Por que?”

“Por que eu já apostei no Old Apollo.”

“Tudo??”

“Claro, você mandou apostar!” – falei isso na maior sinceridade do mundo. Eu estava mesmo magoado com meu tio e convicto de que a culpa era dele.

“Eu nunca disse isso”

“Tanto faz. Você vai me emprestar?”

“E você vai me pagar?”

“Vou.”

“Como?”

“Quando eu ganhar eu te pago e fico com o resto.”

“Ah Deus, que bom plano!”

“E então?”

“Eu acho que por hoje está bom, Don”

“A culpa foi sua que mandou eu apostar no melhor!”

“Eu não estava falando do cavalo.”

O Tio Joseph não me emprestou mais dinheiro para apostar.

Mas foi gentil o suficiente para pagar pelo meu consumo no clube. Então eu comi e bebi o máximo que pude, para puni-lo.

A noite eu passei mal por conta desses excessos. Por causa disso a verdade sobre minha ida ao Jockey veio a tona para mamãe. Apesar de ter ficado muito irritada, ela estava muito mais preocupada com minha saúde. Mães são assim.

Apesar disso, mamãe nunca soube que papai me deu dinheiro e que Tio Joseph me deixou apostar. Achei por bem omitir. Pais e tios são assim.

Antes de me deixar em casa Tio Joseph perguntou quanto papai havia me dado, eu respondi sem mentir e ele me devolveu até um pouco a mais.

Três meses depois do episódio Tio Joseph abriu um estabelecimento na Praça Mauá em sociedade com o Sr. Nélio. Fez muito sucesso.

Demorou até eu entender mas a verdade é mesmo que Tio Joseph nunca esteve falando de cavalos.

***

Me lembro de algum material sobre Buffett que detalhava sobre sua rotina diária. Talvez tenha sido uma matéria ou talvez o livro Snowball. Eu já li muitas coisas de Buffett então é difícil saber ao certo.

Nesse material Buffett fala sobre seu vício em leitura. Entre livros, jornais e relatórios está a noção de que Buffett ocupa cerca de 80% do seu tempo lendo. Talvez tenha sido daí que surgiu a idéia de que ele lê 500 páginas por dia.

As pessoas se apegaram muito nessa questão da leitura. Ler é sem dúvidas transformador.

Mas um outro ponto importante da matéria passou em branco dos olhos desatentos. O outro ponto é sobre a quantidade de tempo que Buffett passa ao telefone. São algumas horas por dia. Como Buffett é muito consciencioso com seu tempo – evitando reuniões e encontros bobos – é se de supor que o tempo que passa ao telefone é com um seleto grupo de pessoas.

O público prestou menos atenção a essa faceta de Buffett do que deveria. Ninguém constrói nada sozinho. A constante interação com um seleto grupo de pessoas próximas paga muitos dividendos, não apenas financeiro. É um excelente retorno sobre o tempo investido.

Tio Joseph entendia bem disso. Talvez até demais.

***

O Twitter é interessante. Pessoas me fazem diferentes perguntas, muitas das quais não relacionadas com investimentos. Dia desses fui perguntado sobre a mais dura lição que aprendi. Aceitação é o nome da lição.

O Tio Joseph foi minha primeira classe em aceitação. Ele partiu cedo demais. Eu nunca tinha perdido alguém até ali. Eu era novo então essa conversa sobre fragilidade da vida nem passava pela minha cabeça.

A verdade é que são muitas as coisas que não podemos mudar. E das que podemos, se realmente queremos mudar, precisamos nos focar em poucas. Então a aceitação é uma condição para a felicidade.

Aprender a aceitar o que está fora do nosso controle é uma escolha que requer dedicação. É difícil. Mas a opção, a não-aceitação, é grande fonte de angústia e frustração.

Como diz o ditado: “hard choices, easy life”. Ou ao menos “easier”.

 ***

Tio Joseph morreu por complicações de uma cirurgia de apêndice. Até hoje tenho calafrios com essa questão de cirurgia de apêndice. Quando um afilhado meu teve uma crise de apendicite recente e teve que fazer uma cirurgia as pressas eu fiquei apreensivo pra burro. Eu fiquei mais apreensivo do que os próprios pais. É difícil superar velhos traumas.

É claro que as cirurgias hoje avançaram muito em relação ao que foi a época do Tio Joseph. Assim é o mundo, ele anda para frente. A questão é que esse caminhar não é rápido o suficiente para fazer manchetes diárias de jornais.

No dia seguinte a morte do Tio Joseph as condições cirúrgicas eram as mesmas de quando ele ainda estava vivo. E no dia seguinte também. E no outro também. Ou pelo menos assim nos parecia.

Mas a verdade é que longe dos holofotes do grande público um batalhão de profissionais dedicava a vida a melhorar isso tudo. E décadas depois cá estamos, com tecnologias que levaram a procedimentos mais seguros. Tudo construido no esforço imperceptível do passo a passo.

Eu acho isso tudo fantástico. Com a idade que tenho hoje é provável que já estivesse morto se tivesse nascido há tão somente duas gerações atrás. A expectativa de vida era muito mais baixa, mesmo ajustando para a questão da redução da mortalidade infantil. Aposentadoria é um luxo recente. As pessoas saiam do trabalho para o cemitério, sem esse lance de curtir a vida na terceira idade. Apenas mais um luxo criado pela força do esforço compounded.

Seja onde for, nunca subestime a força do compounding. Nas relações pessoais ou nos investimentos. No avanço tecnológico e científico.

A grande transformação acontece longe da televisão e dos jornais. A grande transformação acontece sem você ver.

O mundo nunca foi tão bom quanto hoje.

O mundo será muito melhor amanhã.

Be grateful!

 

Happy Thanksgiving,

Don Black

 

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