Tenho um conhecido que diz que relatórios financeiros estão para investir como o manual do carro está para dirigir. Uma das coisas mais estúpidas que você já ouviu, eu sei. É verdade que para alguns traders os números financeiros de uma companhia são dispensáveis mas não é disso que o rapaz se refere. Ele realmente se enxerga como um investidor de longo prazo e acha que não precisa olhar para os relatórios da companhia.
Para ele
basta uma avaliação qualitativa geral do negócio. Na verdade ele já usou até
estratégias mais esotéricas como comprar uma ação só porque sonhou com ela. Para
surpresa de ninguém, esse rapaz não depende dos seus investimentos. Ele é
apenas como boa parte dos participantes do mercado: se diverte com a atividade,
não ganha muito mas também não perde o suficiente para sair do jogo. E assim
vai indo.
Entender
relatórios financeiros é obrigatório para um investidor. Essa é uma verdade. Outra
verdade é que primeiro precisamos aprender a andar para um dia corrermos. Munido
dessas duas verdades decidi escrever o texto de hoje, um texto básico sobre os
relatórios financeiro que espero que possa ajudar os iniciantes.
SIGA O
DINHEIRO
A melhor
forma de entender contabilidade é pensar no negócio. Vamos imaginar como o
dinheiro se mexe dentro de um negócio simples.
(1) Uma
empresa precisa de dinheiro para começar. Ela vai levantar dinheiro vendendo
parte do negócio ou pegando dinheiro emprestado. Assim, acionistas ou credores vão
fornecer capital para o início das operações.
(2) e (3) A
empresa vai pegar essa grana e pagar por equipamentos e instalações para
começar a produzir seu estoque que, mais tarde, será vendido.
(4) e (5) Na
hora da venda a empresa pode vender a vista ou a prazo. Se vender a vista o
estoque vai virar dinheiro. Se for a prazo o estoque vira contas a receber.
(6) Contas
a receber é só um jeito chique de chamar o bom e velho fiado. Tudo que foi
vendido a fiado fica no contas a receber até que o cara que pegou fiado pagar o
que deve. Quando o cara finalmente paga o que deve esse valor sai do contas a
receber e vira dinheiro na mão da empresa.
Agora que a
empresa já ganhou uma grana com suas vendas ela vai poder gastar esse dinheiro
de várias maneiras:
(7) parte
disso vai para produção com a compra de matéria-prima.
(8) parte vai
para investimentos. Aqui a empresa compra mais equipamentos para poder ampliar
a produção por exemplo.
(9) parte
vai embora na forma de impostos para aquele sócio que ninguém gosta
muito chamado governo.
(10) e
parte volta para aqueles que deram dinheiro lá no início de tudo. Pode voltar na
forma de dividendos para os investidores/sócios ou na forma de juros de
dívida para os credores.
Pra
responder essa pergunta eu te convido a conhecer a Pizzaria do Don!
A PIZZARIA DO DON
1. Um milhão
de reais emprestados pelo BNDEAR. O empréstimos vence daqui a muito tempo:
Agora que
tenho dinheiro no caixa é hora de fazer nascer a Pizzaria do Don. Comprei uma
pequena loja e dei uma recauchutada. Comprei também um forno de última geração,
cadeiras, mesas e louças chiques. No total gastei 700 mil reais com a loja, os
equipamentos e o mobiliário.
Sobrou 300
mil. Desses 300 contos eu peguei 200 mil para comprar farinha, queijo,
calabresa, vinho, refrigerante e todos os outros ingrediantes que eu preciso
para atender minha clientela.
Eu sei que
parece muito mas pense que um Romanee Conti é bem caro. Minha pizzaria é
de bacana!
Vou guardar
100 mil reais.
2. Comprei loja,
equipamento (ativo imobilizado) e estoque.
Se eu
tivesse que divulgar um balanço agora o negócio estaria assim:
Noite de inauguração, noite de casa cheia! Alguns amigos políticos que me ajudaram a conseguir o
empréstimo com o BNDEAR vieram. Além deles uma turma fez questão de conhecer
essa nova pizzaria da cidade.
Quando a
noite acabou eu sentei no sofá para tomar nota do que aconteceu. Metade do meu estoque tinha sido
vendido. O pessoal se fartou de pizza e vinho caro. Então eu tive um “custo de
produtos vendidos” de 100 mil reais (metade dos 200 mil reais do estoque).
Como não sou
bobo, abri a pizzaria do Don para ter um bom lucro. Determinei que todo o estoque que eu comprei
por 200 mil reais seria vendido por 600 mil reais. Isso me daria uma margem
bruta de 67%.
Trabalhei
com essa margem na cabeça a noite toda. Como vendi metade do meu estoque,
acabei vendendo um total de 300 mil reais (600,000/2). Então eu vendi 300 mil
reais de produtos que me tinham me custado 100 mil reais.
Mas lembra que eu disse que recebi alguns
amigos políticos? Pois é, como eles são bacanas e me ajudaram com o empréstimo,
eles foram embora e não pagaram. Mas prometeram pagar depois! O valor da conta
deles? 70 mil reais. Então foram 70 mil reais que fiquei pra receber no futuro.
3. Vendi metade
do estoque. Um total de 300 mil reais sendo que 70 mil reais foi fiado e vou receber depois.
Já era hora
de se preparar para a noite seguinte. A hora da abertura estava chegando quando
me dei conta de que o estoque de vinho estava baixíssimo! É assustador o quanto
essa turma bebe de vinho. Eles dizem que vão comer pizza só para ter uma
desculpa para se embriagar.
Fato é que
precisei ir no mercado do português comprar mais vinho as pressas. O português
é guloso e cobra uma fortuna mas aquela altura eu não tinha tempo para ir em
outro lugar. Cheguei no português, escolhi os vinhos e na hora de pagar notei
que tinha esquecido o cartão.
Para minha
sorte o português é meu amigo! Então agora foi a minha vez de pegar fiado.
Peguei 50 mil reais de vinho e fiquei de pagar depois. Bem que eu disse que era
vinho pra xuxu e que o português era meu amigo...
Esses 50
conto vão para o “contas a pagar”. O contas a pagar é quando eu pego fiado e o
contas a receber é quando pegam fiado de mim.
4. Comprei
fiado 50 mil reais de vinho com o português
Indo para a
segunda noite eu notei mais um problema! O problema é que o forno estava
demorando mais para assar as pizzas. Ele já não estava mais tão eficiente como
quando comprei. O nome disso é depreciação. Depreciação é a forma de contabilizar
a perda de produtividade dos equipamentos. Meu forno estava um pouco pior mas
ainda dava para usar. Chega uma hora em que a depreciação vai se acumulando e o
equipamento já não presta mais. Quando isso acontece é hora de substituir o
equipamento todo.
Eu ainda não estava precisando substituir todo mas o forno já não era assim mais tão eficiente. Então a contabilidade diz que eu tenho que contabilizar isso de alguma maneira. A contabilidade está sempre querendo contabilizar tudo que acontece.
A minha maneira aqui foi dizer que o forno sofreu uma depreciação
de dez mil reais. Na vida real a depreciação é medida e contabilizada de outras
maneiras mas por enquanto aceite que o forno sofreu uma depreciação de dez mil
reais.
5. Forno sofreu
depreciação de 10,000.
Se eu for fazer
minha demonstração de resultados agora ela vai ficar assim:
O olhar
atento vai notar que meu lucro está diferente da minha variação de caixa. Meu
lucro foi de 190,000 enquanto meu caixa cresceu 230,000 (dos 100,000 iniciais
para 330,000).
Porque? Essa
diferença está no coração da contabilidade. O lucro contábil tenta retratar a
realidade economica da empresa da melhor forma possível enquanto o caixa mede
apenas quantos reais (R$) já entraram e sairam do negócio.
Lembra
quando eu tive que contabilizar 10 mil reais de depreciação do meu forno? Eu
precisei fazer isso para deixar claro que meu forno já não esta tão eficiente
quanto antes. E por não ser mais tão eficiente, ele hoje vale menos do que
ontem. Por isso meu ativo imobilizado saiu de 700 mil reais para 690 mil reais.
Esses 690 mil reais é um montante mais realista para a atual situação do meu
negócio.
Mas embora
esses 10 mil reais tenham afetado meu lucro, ele não afetou meu fluxo de caixa.
Não afetou por que eu não gastei nenhum real para consertar o forno. Como se
diz, essa depreciação não teve efeito caixa mas impactou meu lucro contábil.
Vamos olhar
para o que aconteceu com o balanço da minha pizzaria, comparar com a
demonstração de resultados e tentar construir uma demonstração do fluxo de
caixa para conciliar essa diferença entre lucro e caixa.
O balanço mudou
desde a última vez que construimos (inicial) e agora esta da seguinte forma
(final):
(a) Vamos
começar do lucro reportado de 190 mil reais. Já expliquei que depreciação
afetou meu lucro mas não afetou meu caixa. Sendo assim, precisamos colocar esse
valor de depreciação de volta no lucro para tentar chegar no caixa.
(b) Meu
estoque saiu de 200 mil reais para 150 mil reais. Essa redução de 200 para 150
mil é uma fonte de caixa para a empresa. É um dinheiro que estava preso na
forma de estoque e que agora foi liberado.
(c) O meu contas
a receber saiu de zero para 70 mil reais. A decisão de conceder esse crédito
para meus amigos políticos foi uma decisão de negócios que eu tomei e que
portanto tirou 70 mil reais do caixa.
(d) Meu
contas a pagar saiu de zero para 50 mil reais. Esse é um dinheiro que eu
deveria ter gastado mas que não saiu da conta porque foi uma compra a crédito. Graças
ao meu amigo português essa foi uma decisão de negócios que eu pude tomar e que
liberou 50 mil reais para o caixa.
Pronto! Partindo do lucro da pizzaria nós ajustamos as variações das entradas "não-caixa" do balanço e chegamos naquilo que foi o caixa gerado pela operação.
A conclusão mais importante aqui é que o fluxo de caixa e a demonstração de resultados mostram coisas diferentes e por isso é importante que o investidor olhe os dois.
Eu acho que já está bom para esse primeiro texto. E com tudo que vimos aqui eu gostaria que você pensasse em algumas perguntas:
1) O que é um balanço, uma demonstração de resultados e uma demonstração de fluxo de caixa?
2) Como os três estão conectados?
3) Porque o lucro e o caixa gerado nem sempre iguais? É possível uma empresa ter lucro e quebrar?
Stay cool,
Don Black
Parabéns, ficou didático, simples e bem construído!
ReplyDeleteMuito obrigado! O objetivo é esse mesmo, ser simples e didático.
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