Meu tio era
um degenerado. Contanto que estivesse acordado, Tio Joseph estava ou fumando ou
bebendo ou vadiando. Não raro fazia mais de um por vez. Mais do que um adepto, Tio
Joseph era grande entusiasta dos seus hábitos e achava que não havia outra
forma de um homem de verdade viver.
“Donzinho,
você é o mais próximo que eu tenho de um filho. Não vá virar um desses maricas
e arruinar nosso nome. Homem de verdade bebe, fuma e é mulherengo!”
Com um
conceito de “homem de verdade” tão discutível não é de se surpreender que minha
mãe desaprovasse minha proximidade com Tio Joseph. Para seu absoluto desalento,
a verdade é que eu venerava o Tio Joseph. Aliás, exceto pela minha mãe, todo
mundo o venerava. Se escrevo dele hoje é por que a morte recente do Sean
Connery me fez relembrar o Tio Joseph. Esse era o patamar da classe do Tio
Joseph, o Sean Connery dos anos 60.
Num dia
qualquer o Tio Joseph foi me buscar na escola. Não que precisasse. Pode parecer
entranho para a geração do transporte escolar mas naquela época era comum as
crianças irem a pé para casa. Ainda assim eu gostava quando o Tio Joseph ia me
buscar. A gente sempre passava no bar Simpatia e eu tomava um frapê de coco
enquanto Tio Joseph bebia alguma coisa e jogava conversa fora com o seu Sica
português. Tio Joseph estava sempre tricotando com alguém.
Acontece
que quando foi nesse dia nós não fomos no Simpatia. Ao invés disso Tio Joseph
me levou em uma alfaiataria onde o funcionário me mediu dos pés a cabeça. Não
era o tipo de programa que eu apreciasse muito. Quando então Tio Joseph me
deixou em casa, eu fui bem direto:
“Tio, hoje
a tarde muito chata!”
“É assim
mesmo Don, nem sempre dá pra ter o bom sem ter o ruim antes.”
“Sei, e
cade o bom?”
“Você vai
ver no fim de semana. Sua roupa já vai estar pronta até lá.”
“E por que
não posso usar a roupa que eu tenho?”
“Porque ninguém
há de levar um maltrapilho a sério.”
“Tio, eu
sou uma criança!” - e como toda criança há de testemunhar, crianças não
costumam ser levadas a sério pelos adultos, estejam elas de pijama ou de traje
de gala
“Pois bem,
uma criança maltrapilha”
Chegado o
fim de semana e Tio Joseph apareceu na loja do papai. Era lá onde eu passava a
maior parte do tempo quando não estava na escola.
“Tudo bem
se o Don passar o dia comigo?”, perguntou Tio Joseph
Fiquei na
expectativa de que papai se apiedasse, mas sem maiores esperanças já que ele
apreciava minha ajuda no trabalho. Para minha surpresa ele não fez objeções:
“Pode ser.
Onde é que vocês vão?”
“No
Jockey”, respondeu meu tio
Fiquei radiante
com a resposta mas me pareceu à época que Tio Joseph teria feito melhor em
mentir. Largar o trabalho para ir no Jockey? Vi tudo ir por água abaixo.
Acontece
que para minha felicidade o papai não tinha a mesma resistência ao Tio Joseph
que mamãe tinha (nem ao Tio Joseph e nem ao Jockey, diga-se). Acho que em parte
porque era seu irmão, mas em parte porque todo mundo adorava o Tio Joseph mesmo.
Tio Joseph era magnético pra burro.
Só o que
papai disse foi:
“E ele vai
vestido assim?”
Mas que
diabos! Qual é o problema com minha roupa???
“Meu
alfaiate está nos esperando. Ele se troca lá.”
“Tudo bem
então” - disse papai. E para minha absoluta surpresa completou: - “Aqui garoto,
toma isso e não conta pra sua mãe.”
Papai pegou
um tanto de dinheiro que guardava no bolso da camisa e me deu alguns merréis.
E eu, um
péssimo avaliador da natureza humana, vi como as vezes as pessoas nos
surpreendem.
***
Eu devo que
confessar o quão bem me senti ao vestir meu terno. Era como se eu fosse
um cidadão de primeira classe, como o filho do presidente ou coisa parecida. Se
por algum viés de confirmação ou não, achei mesmo que os adultos estavam a me
levar mais a sério. É possível que estivessem mesmo, já que adultos são sempre
muito sensíveis a aparências.
Uma vez no
Jockey compreendi o problema com minha velha roupa. Nunca antes houvera visto
tamanho número de gente tão bem apanhada. Tal é a força do relativo que àquela
altura eu já nem me sentia mais tão importante assim com o meu terno.
Tio Joseph
acenava e falava com deus e o mundo. Mais parecia político em campanha já que
até bebê ele pegava no colo. Meu pai dizia que esse era o trabalho do Tio
Joseph, falar com os outros. Minha mãe dizia que ele era um vagabundo com
sorte. É engraçado como podemos construir versões tão diferentes de uma mesma
realidade. Tudo o que importa é que a narrativa se encaixe naquilo que
acreditamos.
O fato é
que o Tio Joseph era abastado. Olhando assim de longe parecia mesmo que ele não
fazia muita coisa. Eu por outro lado vivia ocupado. Entre escola e a loja do
papai lá se ia 90% do meu tempo. Apesar disso eu não conseguia juntar muito
dinheiro. Vá lá que eu ainda era muito jovem mas ainda assim me parecia um
terrível equilíbrio entre esforço e recompensa.
Não é de se
admirar que eu visse no Tio Joseph um modelo de trabalho, ainda que não
soubesse bem qual trabalho era esse.
***
Tio Joseph
pareceu concentrar suas atenções em um sujeito de uma tremenda força de
presença. Parecia mesmo o dono do mundo. Eu da minha parte não estava disposto
a ficar parado por horas falando com o dono do mundo, fosse ele quem fosse. Então
sob a benção do meu tio eu fui passear pelo clube. Tudo muito bonito e
grandioso, eu estava impressionado.
Quando
finalmente voltei Tio Joseph ainda estava no mesmo lugar e conversando com a
mesma pessoa, o dono do mundo. Nem minha tia viveu tempos de tanta
exclusividade assim. Então o dono do mundo virou pra mim e perguntou:
“E você
garoto, que tal uma aposta no próximo páreo?”
“Sério?! Eu
posso apostar?”, e olhei para o meu tio
“Sozinho
você não poderia mas comigo tudo bem.”
E então ele
me passou um papel com os páreos:
“Em quem
você vai apostar?”, perguntei meio perdido
“Vou
apostar no cavalo do Nélio” - respondeu e fez com a cabeça na direção do dono
do mundo - “O nome do cavalo é Old Apollo.”
O papel com
os páreos era complicado. Eu não entendia muita coisa. Quando finalmente me dei
conta, vi que o Old Apollo não ia mudar muita a minha vida ainda que ganhasse.
“Não é
melhor apostar em um que me dê mais dinheiro se ganhar?”
“Don, o
problema de apostar contra os melhores é que os que ganham sempre arrumam um
jeito de seguir ganhando. As vezes é melhor ganhar menos ao lado do melhor do
que colocar suas esperanças em um pangaré.”
Não lembro
se as palavras foram exatamente essas mas a mensagem foi. E Tio Joseph passou
essa mensagem com muita propriedade, para felicidade do Sr. Nélio e minha absoluta
confusão.
Até cinco
minutos atrás eu achava que não poderia apostar e estava tranquilo com isso. De
repente fiquei muito feliz ao saber que poderia apostar. A felicidade durou dez
segundos e agora lá estava eu, consumido pela ansiedade por ter que escolher um
cavalo e sem fazer idéia de como. Uma montanha russa de emoções.
Acontece
que o Tio Joseph ia todo santo dia no Jockey, então achei que seria boa idéia
seguir seus ensinamentos e apostei o dinheiro que papai me deu no Old Apollo.
A corrida
durou uns 2 minutos e apostar no Old Apollo foi a melhor coisa que eu fiz, por
aproximadamente 1 minuto e 50 segundos. Isso porque nos 10 segundos finais um
cavalo escuro que passou a corrida toda na mediocridade do pelotão de trás
achou que era boa idéia assumir a liderança. Eu acho que nunca vi um animal
correr tanto. O infeliz parecia estar fugindo de um leão. Disparou, ganhou a
prova e com isso levou meu dinheiro.
Levou um
tempo até eu parar de ter raiva desse cavalo. Aliás, eu fiquei com muita raiva
de todos que estavam torcendo por ele também. Até do Old Apollo eu estava com
raiva, o que é muito interessante porque por 1 minuto e 50 segundos ele foi o centro
das minhas atenções e o ser vivo que eu mais amei no mundo.
Outro
problema é que eu ia ficar ali no Jockey por mais umas duas horas e como eu tinha perdido
meu dinheiro, seriam duas longas horas. Me pareceu muito desagradável ficar no
meio de tanta gente chique, em um ambiente com tantas apostas e emoções, e não
ter nenhum tostão furado. Então eu surgi com uma idéia muito boa, que era a de
ganhar a próxima aposta. A única questão era arrumar dinheiro para fazer isso:
“Tio, você
pode me emprestar um dinheiro?”
“Pra que?”
“Pra eu
apostar no próximo páreo.”
“Pois
aposte com o dinheiro que seu pai te deu, oras.”
“Isso não
vai dar.”
“Por que?”
“Por que eu
já apostei no Old Apollo.”
“Tudo??”
“Claro,
você mandou apostar!” – falei isso na maior sinceridade do mundo. Eu estava
mesmo magoado com meu tio e convicto de que a culpa era dele.
“Eu nunca
disse isso”
“Tanto faz.
Você vai me emprestar?”
“E você vai
me pagar?”
“Vou.”
“Como?”
“Quando eu
ganhar eu te pago e fico com o resto.”
“Ah Deus, que bom plano!”
“E então?”
“Eu acho
que por hoje está bom, Don”
“A culpa
foi sua que mandou eu apostar no melhor!”
“Eu não
estava falando do cavalo.”
O Tio
Joseph não me emprestou mais dinheiro para apostar.
Mas foi gentil
o suficiente para pagar pelo meu consumo no clube. Então eu comi e bebi o
máximo que pude, para puni-lo.
A noite eu
passei mal por conta desses excessos. Por causa disso a verdade sobre minha ida
ao Jockey veio a tona para mamãe. Apesar de ter ficado muito irritada, ela estava
muito mais preocupada com minha saúde. Mães são assim.
Apesar
disso, mamãe nunca soube que papai me deu dinheiro e que Tio Joseph me deixou
apostar. Achei por bem omitir. Pais e tios são assim.
Antes de me
deixar em casa Tio Joseph perguntou quanto papai havia me dado, eu respondi sem
mentir e ele me devolveu até um pouco a mais.
Três meses
depois do episódio Tio Joseph abriu um estabelecimento na Praça Mauá em
sociedade com o Sr. Nélio. Fez muito sucesso.
Demorou até
eu entender mas a verdade é mesmo que Tio
Joseph nunca esteve falando de cavalos.
***
Me lembro
de algum material sobre Buffett que detalhava sobre sua rotina diária. Talvez
tenha sido uma matéria ou talvez o livro Snowball. Eu já li muitas coisas de
Buffett então é difícil saber ao certo.
Nesse
material Buffett fala sobre seu vício em leitura. Entre livros, jornais e
relatórios está a noção de que Buffett ocupa cerca de 80% do seu tempo
lendo. Talvez tenha sido daí que surgiu a idéia de que ele lê 500 páginas por
dia.
As pessoas
se apegaram muito nessa questão da leitura. Ler é sem dúvidas transformador.
Mas um
outro ponto importante da matéria passou em branco dos olhos desatentos. O outro ponto é sobre a
quantidade de tempo que Buffett passa ao telefone. São algumas horas por dia.
Como Buffett é muito consciencioso com seu tempo – evitando reuniões e
encontros bobos – é se de supor que o tempo que passa ao telefone é com um
seleto grupo de pessoas.
O público prestou menos atenção a essa faceta de Buffett do que deveria. Ninguém constrói nada sozinho.
A constante interação com um seleto grupo de pessoas próximas paga muitos
dividendos, não apenas financeiro. É um excelente retorno sobre o tempo
investido.
Tio Joseph
entendia bem disso. Talvez até demais.
***
O Twitter é
interessante. Pessoas me fazem diferentes perguntas, muitas das quais não
relacionadas com investimentos. Dia desses fui perguntado sobre a mais dura
lição que aprendi. Aceitação é o nome da lição.
O Tio
Joseph foi minha primeira classe em aceitação. Ele partiu cedo demais. Eu nunca
tinha perdido alguém até ali. Eu era novo então essa conversa sobre fragilidade da vida nem passava pela minha cabeça.
A verdade é
que são muitas as coisas que não podemos mudar. E das que podemos, se realmente
queremos mudar, precisamos nos focar em poucas. Então a aceitação é uma
condição para a felicidade.
Aprender a
aceitar o que está fora do nosso controle é uma escolha que requer dedicação. É
difícil. Mas a opção, a não-aceitação, é grande fonte de angústia e frustração.
Como diz o
ditado: “hard choices, easy life”. Ou ao menos “easier”.
***
Tio Joseph
morreu por complicações de uma cirurgia de apêndice. Até hoje tenho calafrios
com essa questão de cirurgia de apêndice. Quando um afilhado meu teve uma crise
de apendicite recente e teve que fazer uma cirurgia as pressas eu fiquei
apreensivo pra burro. Eu fiquei mais apreensivo do que os próprios pais. É
difícil superar velhos traumas.
É claro que
as cirurgias hoje avançaram muito em relação ao que foi a época do Tio Joseph. Assim
é o mundo, ele anda para frente. A questão é que esse caminhar não é rápido o
suficiente para fazer manchetes diárias de jornais.
No dia
seguinte a morte do Tio Joseph as condições cirúrgicas eram as mesmas de quando
ele ainda estava vivo. E no dia seguinte também. E no outro também. Ou pelo
menos assim nos parecia.
Mas a
verdade é que longe dos holofotes do grande público um batalhão de profissionais
dedicava a vida a melhorar isso tudo. E décadas depois cá estamos, com tecnologias
que levaram a procedimentos mais seguros. Tudo construido no esforço
imperceptível do passo a passo.
Eu acho
isso tudo fantástico. Com a idade que tenho hoje é provável que já estivesse
morto se tivesse nascido há tão somente duas gerações atrás. A expectativa de vida era muito
mais baixa, mesmo ajustando para a questão da redução da mortalidade infantil. Aposentadoria
é um luxo recente. As pessoas saiam do trabalho para o cemitério, sem esse
lance de curtir a vida na terceira idade. Apenas mais um luxo criado pela
força do esforço compounded.
Seja onde
for, nunca subestime a força do compounding. Nas relações pessoais ou nos
investimentos. No avanço tecnológico e científico.
A grande
transformação acontece longe da televisão e dos jornais. A grande transformação
acontece sem você ver.
O mundo
nunca foi tão bom quanto hoje.
O mundo
será muito melhor amanhã.
Be grateful!
Happy Thanksgiving,
Don Black