Desde que
comecei no twitter que não vejo outra empresa ser tão falada quanto a Via
Varejo. O Banco Inter chegou perto em determinada época mas logo perdeu força.
Enquanto isso a Via Varejo seguiu o seu ritmo de citações. Aventureiros, alunos
estudiosos, perfis anônimos dedicados à marca e gestores renomados já se
aventuraram pelo campo minado do fintwit dando opinião sobre a empresa. Como eu
não quero passar 2019 excluído dessa festa vou deixar aqui meu rabisco sobre a
Via Varejo.
Um pouco de perspectiva
A história
da Via Varejo é uma confusão dos diabos. Para ajudar no meu entendimento resolvi separar as peças:
1) Casas
Bahia:
A Casas
Bahia começou no fim dos anos 50 pelas mãos do imigrante polonês Samuel Klein. Samuel
Klein foi um sobrevivente do holocausto que imigrou para o Brasil com sua
mulher e seu primogênito, Michael Klein. No Brasil, Samuel passou cinco anos
vivendo como mascate até juntar dinheiro e abrir sua primeira loja Casas Bahia.
Com foco
nas classes C e D e fazendo vendas a prazo no carnê, a Casas Bahia foi
crescendo ao longo dos anos enquanto fazia aquisições pelo caminho. Comprou as antigas rede Columbia, Tamakavi e Casas Garson.
Hoje a
Casas Bahia é uma gigante com mais de 750 lojas, 50 mil funcionários e foco na
comercialização de eletrodomésticos, eletroeletrônicos, móveis e utilidades
domésticas.
2) Ponto
Frio:
A Ponto
Frio também nasceu das mãos de um imigrante. Dessa vez de um imigrante romeno,
Alfredo João Monteverde, que começou importando pneus para o Rio de Janeiro ainda
nos anos 40. A Ponto Frio estabeleceu seu nome e sua marca poucos anos depois, graças
a importação de geladeiras dos Estados Unidos.
Assim como
a Casas Bahia, a Ponto Frio ganhou alcance nacional com aquisições de
redes pelo país, casos da Casas Buri (SP), Kit Eletro (MG) e Disapel (região Sul do
Brasil). Foi uma das primeiras empresas brasileiras a explorar a internet,
ainda nos anos 90.
Hoje possui
mais de 250 lojas e vende eletroeletrônicos, eletrodomésticos, móveis e
utilidades domésticas.
3) Grupo Pão de Açúcar (GPA)
O GPA foi fundado em 1948 pelo imigrante
(sempre eles!) português Valentim Diniz. Valentim é pai de Abílio Diniz, figura
conhecida e parte importante do que vem pela frente. O GPA já era um gigante
nacional quando Abílio assumiu os negócios no início dos anos 90 e continuou
crescendo sob seu comando.
Hoje o GPA é controlado pelo grupo francês
Casino (Abílio Diniz já não comanda e nem tem nenhum direito no grupo), possui
mais de mil pontos de venda, quase cem mil funcionários e inclui empresas
conhecidas no seu portfólio como Extra Supermercados, Assaí, Comprebem e o
próprio mercado Pão de Açúcar.
Fusões, Aquisições
& Confusões
Para felicidade de banqueiros e consultores, muitos negócios foram feitos e desfeitos até a Via Varejo chegar no seu estado
atual. Alguns bem resolvidos, outros nem tanto. Vamos aos mais importantes.
1. Casino/Abílio Diniz (GPA):
O relacionamento Casino e Pão de Açúcar existe
desde 1999, que foi quando os franceses se tornaram acionistas do grupo
brasileiro. A participação era de 24% até maio de 2005 quando os franceses
resolverem ampliar a presença. E assim foi feito quando, em um negócio onde o
grupo francês desembolsou 900 milhões de dólares, Casino e Abílio Diniz criaram
uma joint venture (Wilkes Participações) para controlar o GPA.
Segundo o acordo, Abilio Diniz seguiria
presidente do Conselho e da holding controladora do grupo. Mas a Casino teria o
direito de aumentar gradativamente sua participação na holding e, a partir de
2012, teria também o direito de nomear o presidente da holding mediante
cumprimento de algumas exigências. As
exigências foram sendo cumpridas e 2012 foi chegando.
Em meados de 2011, Abilio Diniz se juntou aos
sempre presentes BTG Pactual e BNDES para arquitetar uma nova operação. A idéia
era fundir o GPA com a operação brasileira do Carrefour via participação de uma
empresa nacional chamada Gama, pertencente ao BTG Pactual e capitalizada pelo
BNDES.
O Casino eventualmente soube do que estava
acontecendo, classificou a movimentação como hostil e ilegal e vetou o negócio.
Com medo da repercussão o BNDES saiu do jogo. E sem o BNDES os negócios entre
grandes players no Brasil ficam mais difíceis.
Então no final das contas a fusão não saiu e a
relação Casino/Abilio Diniz se tornou litigiosa. O executivo da Casino,
Jean-Charles Naouri, passou a comandar o GPA em 2012 e, um ano depois, em 2013,
Casino e Abilio Diniz encerraram o litígio. Em novo acordo, Abilio Diniz se
retirou do conselho e se desligou de todas as atividades que ainda exercia no
grupo.
2. GPA/Ponto Frio
Essa até que foi uma operação simples diante de
todo o enredo. Quando o fundador Alfredo Monteverde faleceu, em 1969, ele
deixou a Ponto Frio de herança para seu filho Carlos Monteverde e para sua
esposa Lily Monteverde, com quem se casara em 1965.
Lily Monteverde – hoje mais conhecida como Lily
Safra após seu posterior casamento com o banqueiro Edmond Safra – e Carlos
Monteverde controlavam a Ponto Frio através de uma empresa chamada Globex.
A primeira tentativa de se desfazer dos
negócios veio em 1999 mas não prosperou por divergências com Simon Alouan,
então CEO e acionista minoritário da Ponto Frio. Eventualmente Alouan vendeu
sua participação para a Investidor Profissional e, em 2009, Lily Safra voltou a
ofertar sua participação na Ponto Frio com a ajuda da Goldman Sachs.
Especula-se que entre os interessados na época estavam Lojas Americanas,
Elektra, Walmart, fundos PE e, vejam só, Magazine Luiza.
Como era 2009 e a relação com a Casino ainda
não estava devastada, Abilio avaliou que seria excelente idéia uma rede de
supermercados virar dona de uma rede de eletroeletrônicos. Para isso usou os
recursos que o grupo francês injetou no GPA e levou a Ponto Frio.
3. GPA/Casas Bahia
Aqui um pouco mais de confusão. Em fins de 2009,
embalado pela recente aquisição do Ponto Frio e por meio da recém-controlada
Globex, o GPA comprou a Casas Bahia. O desenho era o GPA manter todos os
negócios de bens duráveis (como o Extra Eletro) debaixo da Globex (holding da
Ponto Frio). Paralelamente a Casas Bahia criaria uma nova sociedade chamada
Nova Casas Bahia, para onde ativos e passivos seriam migrados. Alguns negócios
da Casas Bahia, como imóveis e participações societárias, ficariam de fora
dessa nova sociedade. E então, por fim, a Nova Casas Bahia seria incorporada
pela Globex.
O acordo original foi negociado por Michael
Klein com o aval do seu pai e fundador das Casas Bahia, Samuel Klein. Acontece
que por obra do destino a família Klein se arrependeu alguns meses depois.
Dessa vez liderado por Samuel Klein, a família argumentou que a empresa havia
sido subavaliada e portanto exigiam uma renegociação sob pena de judicializarem
a questão.
Após algum tempo e nova negociação, GPA e Casas
Bahia chegaram em um novo acordo. Dessa vez a família Klein teria maiores
poderes, a Casas Bahia foi reavaliada (pra cima, claro), o GPA manteve o
controle da Globex com 53% de participação (contra 47% da Casas Bahia) e Raphael
Klein, filho do Michael Klein, se tornou presidente executivo da Globex.
Pouco mais de 2 anos depois, em 2012, a Globex
mudou seu nome para Via Varejo.
A Via Varejo
Então a Via Varejo nasceu de uma sequencia de
grandes fusões e aquisições onde uma rede de supermercados formada por uma
sociedade litigiosa (Abílio Diniz e Casino) expande para fora do seu ramo de
atuação se associando de forma também litigiosa (Abílio Diniz e Kleins) com
empresas gigantes e de eficiência duvidosa. As vezes não é preciso complicar mais do que
isso para saber se vai dar certo.
E não deu. Algumas mudanças societárias – como
a redução da participação da família Klein – foram acontecendo aos poucos ao
longo dos anos enquanto a Via Varejo seguia seu ritmo de pobre execução, muito
discurso e pouca performance. Já em 2016, com Abílio Diniz fora de cena, o
grupo Casino começou a manifestar o desejo de se desfazer da Via Varejo. E aqui
eu pulo finalmente para o ano de 2019.
Em junho desse ano o GPA conseguiu sair do
negócio vendendo sua fatia de 36% para a família Klein e mais um grupo de
fundos. Hoje os maiores acionistas são a família Klein com 27.5% e a XP Asset
com 7%. Ainda que seja um avanço, a nova configuração está longe de ser uma
garantia de sucesso.
Histórico Operacional
O gráfico conta a história de uma empresa com
margens fracas e tendência negativa. É a visualização de uma gestão desleixada,
tal qual descrevi lá em cima.
A evolução no crescimento de vendas também não
é lá grandes coisas mas de certa maneira é razoável considerando o estágio de
vida das principais marcas da empresa. O volume de vendas em termos absolutos é
realmente o que chama atenção e coloca a Via Varejo entre as maiores vendedoras
do país (talvez a maior, não tenho certeza). Para muitos investidores essa é a prova da força das marcas da Via
Varejo e também seu porto seguro.
Pessoalmente eu acho que “marca” é de forma
geral uma vantagem competitiva muito superestimada. Além disso tem valor
especialmente limitado no varejo com exemplos nacionais e internacionais nas
figuras de Arapuã, Mesbla, Ultralar e Lazer, Sears, Macy’s, etc.
A grande vantagem do alcance da Via Varejo está
na sua estrutura física como ferramental logístico para o desenvolvimento do
e-commerce da empresa. Mas isso de nada vai adiantar se a Via Varejo não entrar
de uma vez por todas no jogo do comércio online.
E-Commerce
Eu não vou gastar saliva pra explicar a
importância do e-commerce. Todo mundo já sabe. Já é realidade, vai crescer,
enfim, tem que existir. E esse é um nó que a Via Varejo tem que desatar.
Enquanto a Via Varejo passou os últimos três
anos com uma participação do online estagnada em +- 20% das vendas, sua
concorrente Magazine Luiza saiu de 20% para mais de 35% de participação do
online no total. E isso a Magalu fez sem perder vendas nas lojas físicas. Isso
mostra como a Via Varejo tem estrada pra percorrer.
A questão é como vai ser feito. A estrutura do
comércio online já vinha saudável e bem desenhada internamente na Magalu mesmo
quando a empresa ainda era um patinho feio. Era justamente a área comandada por
Frederico Trajano, que mais tarde viria a mudar o patamar da companhia. Já a
Via Varejo não tem essa base.
Na verdade o e-commerce é mais uma das
confusas peças da história da Via Varejo. Tudo começou na época da compra do Ponto
Frio pelo GPA e o surgimento da Nova Pontocom, empresa responsável pelo
comércio online. Eventualmente a Nova Pontocom se tornou Cnova Brasil e, graças
a uma infeliz idéia do Casino - que sonhava em unificar todas as operações
globais de comércio eletrônico do grupo - era uma operação online separada da
operação offline.
Em outras palavras, a Cnova Brasil operava as
vendas online da Casas Bahia e do Ponto Frio sem integração com a operação
física. A idéia era tão idiota que, com operações e incentivos segregados, os
canais online faziam concorrência com as lojas físicas. A Cnova Brasil foi muito
má administrada e sofreu até com fraudes na gestão de estoque. Dois anos de
muito suplício se passaram e, em 2016, os envolvidos resolveram integrar a
Cnova Brasil à Via Varejo. Ainda assim os resultados do e-commerce seguiram
ruins nos anos seguintes, com muita instabilidade operacional.
Instabilidades essas que parecem continuar. Em
relação ao último resultado trimestral da Via Varejo, o recém-empossado CEO Roberto
Fulcherberguer disse o seguinte:
“No início de julho, quando incorporamos a
parte fiscal da Cnova, vivemos problemas sistêmicos. A decisão então foi tirar
a venda da empresa (1P) e acelerar o marketplace (3P)”
Eu sou um grande entusiasta de sacrificar
resultados de curto prazo se for em prol de soluções de longo prazo. Mas o
histórico da operação online da Via Varejo não transmite confiança. Então ainda
que eu aprecie a transparência do CEO, o discurso do call de que o ‘problema
sistêmico’ foi superado tem que ser traduzido em números.
E esse número do online é uma das principais
coisas que vou acompanhar na companhia.
Estrutura de Capital
A Via Varejo tem uma alavancagem considerável e explicada
em parte pelo formato do negócio, já que atua como interveniente em muitas
operações de financiamento, sendo a maioria delas de até 12 meses. Apesar desse
desenho ser uma marca da empresa, é uma estrutura de capital que requer
melhoria. Uma variação no capital de giro que melhore a geração de caixa
operacional e reduza a dívida, melhorando a estrutura de capital, é uma coisa
que eu gostaria de ver e também pretendo acompanhar.
Management
Até hoje a Via Varejo é um grande ciclo de ilusão
seguida de desilusão. Poucos anos, muitos executivos, infinitas promessas e nenhum
resultado. Já prometeram crescimento do e-commerce, corte de custos, melhoria
de margem, etc. Para dar credibilidade às promessas criaram vários planos de
ação com nomes como “Crescer Mais”, MOVVE e MOVVE 2.0, que tenho certeza que garantiram
muitas horas de reunião, deram dinheiro para consultores e não retornaram nada
para os acionistas.
Agora o grande vilão GPA foi embora e Michael
Klein chega montando seu cavalo branco como o grande salvador. Claro, enquanto
divide seu tempo com seus negócios do grupo CB – imobiliário, aviação e
comercialização de automóveis. Então para ajudar na tarefa, Michael colocou
Roberto Fulcherberguer no comando da Via Varejo.
Segundo consta, Roberto Fulcherberguer fez carreira
na Arapuã, migrou para o GPA e ganhou a confiança da família Klein em um relacionamento
que começou quando Raphael Klein comandava a Globex. Fulcherberguer passou anos
como VP até passar a conselheiro do grupo. Ou seja, Fulcherberguer e Via Varejo
já se conhecem há muitos anos.
Imagino que ele tenha DNA comercial. Pelo menos
foi o que me pareceu pelo último call da empresa. Muito discurso motivacional,
papo de novela da Globo, futebol, menção à “música chiclete” e ênfase em compra
de cadeira e ar condicionado. Nada que me anime muito.
Em sua defesa, falou também sobre pontos sensíveis
da empresa como a instabilidade do e-commerce, gestão de estoque e logística. Ainda
assim sinto falta de uma visão clara do que se almeja para a companhia e um
tratamento mais objetivo das métricas de interesse. Por ora parece que o que
se quer é cortar um pouco da despesa, aumentar um pouco a venda online e pronto. Boas
medidas, vão destravar algum valor se forem alcançadas, mas não são uma “visão”.
Ainda
sobre o management, parece que andaram contratando bons executivos. Alguns
vindos da concorrência – leia-se Magazine Luiza. Como não os conheço fica
difícil opinar. Mas uma coisa é certa: grandes executivos tem resultados
diferentes quando sob diferentes condições. E é aí que seria bom ter uma visão
pra empresa, assim como a Magalu criou a sua em torno da tecnologia.
Valuation
O primeiro desafio de uma avaliação da Via
Varejo é jamais citar a Magazine Luiza. Aliás, vou reformular. A Magazine Luiza deve ser levada em
consideração nas premissas da Via Varejo no sentido de que é uma grande
concorrente, já em outro nível de atuação e bem capitalizada. Mas pára por aí.
A idéia de que a Via Varejo está subavaliada via múltiplos para a Magalu,
ou de que a Via Varejo vai ter recuperação comparável à da Magalu é um misto de
preguiça com wishful thinking.
Seja lá o valuation que você fizer, é importante
que os números façam sentido com a história que você enxerga. Para o meu
valuation eu enxerguei uma empresa madura cuja reorganização e menor
complexidade societária vai trazer um pequeno
ganho operacional construído ao longo dos próximos 4 anos. O atual tamanho da
empresa, nível da concorrência e meu incômodo/desconfiança com a atual gestão
ainda não me permitem atribuir maiores vôos à Via Varejo.
A cotação
atual não me daria entrada com margem de segurança para um investimento nesse
momento. Duas coisas ainda podem acontecer para que um investimento na empresa fosse
reavaliado: (1) o mercado se frustrar com eventuais resultados negativos que
porventura a empresa venha a divulgar (e que é natural em uma reestruturação)
ou (2) resultados que aumentassem minha confiança em relação à capacidade de
execução e visão para a companhia da atual gestão.
Fechamento
A Via Varejo é hoje um caso de reestruturação. Não
é uma empresa a beira da falência mas é uma reestruturação no sentido de que se
busca destravar um potencial de venda e rentabilidade. Um potencial que está hoje subaproveitado em uma empresa que vem parada no tempo e com números cada vez
menos animadores.
De forma geral uma companhia em reestruturação
precisa de gestão com visão e capacidade de execução, geração de caixa para reinvestimento
e força de balanço. Os dois últimos proporcionam tempo e condição para que a
reestruturação aconteça enquanto o primeiro é o responsável pela condução do
processo. Sobre a Via Varejo, ainda me sinto relativamente confortável com os
dois últimos e um pouco desconfiado do primeiro.
Seja como for, lembre-se que reestruturações
são processos longos e cheios de incerteza. Ter esse entendimento vai ajudar a
controlar suas expectativas em relação aos resultados (tempo e magnitude) e vai
ajudar também a fazê-lo dimensionar a posição da empresa no seu portfólio com
responsabilidade.
Happy Thanksgiving,
Don Black